sábado, 22 de dezembro de 2007

A cadeira de Gertrude – Heloisa Ausier

No final do século 19 apareci num pequeno sítio no interior de Minas. Nunca conheci minhas origens, mas isso nunca foi realmente importante pra mim. Me lembro bem da varanda onde ficava. Era uma casa de madeira que rangia aos passos dos moradores. Que som mais tenebroso! À noite ficava escutando os barulhos dos grilos e sapos e da coruja que morou lá numa viga, com os filhotes. O dono da casa, homem de seus quarenta e poucos anos tinha um gato que dormia no meu assento de palha. Um dia ouvi umas visitas falarem... _Que cadeira de balanço rústica _. Como nunca tinha ouvido aquela palavra, fiquei intrigada. “O que seria rústica, algum tipo de cor?”. Mas o que eu estava falando antes? Ah! do gato! O nome do gato era Gertrude. Aí vocês vão falar. _ Mas isso é nome de mulher _. Pois é... o pobre coitado continuou sendo chamado de Gertrude mesmo depois de saberem que era macho. E ele era o cara mais ranzinza desse mundo. Resmungava se alguém o tirasse da cadeira, resmungava querendo comida e resmungava se a cadeira não estivesse na posição certa na varanda. Isso porque ele gostava de assistir ao banho que os patinhos de um lago próximo tomavam todo dia. Acho que ele fantasiava como seria se conseguisse pegar um pato daqueles, mas nunca tentava de tão preguiçoso.
Eu ficava ali, balançando a cada movimento do Gertrude. Não me lembro de mais ninguém sentar em mim, o que me incomodava, já que as outras cadeiras da casa eram usadas pelos humanos. Será que humanos naquela época não sentavam em cadeiras rústicas? O cheiro da minha madeira já quase não se sentia por conta do odor do gato que prevalecia. E assim se passaram alguns anos. Quando Gertrude morreu, outro gato tomou seu lugar e assim continuei sendo usada apenas por felinos.
O século mudou e junto com ele fui parar numa casa de campo que era usada apenas em fins de semana. Foi aí que começou meu suplício. A casa ficava vazia de humanos durante a semana, mas os cachorros tomavam conta da varanda e inevitavelmente umas três vezes por noite eu levava uma mijada em uma de minhas pernas. Às vezes o jato era pequeno se o cão era baixinho, mas se era um grandão, me molhava até o assento. Fui ficando feia e sem vida. É claro que minha madeira era boa, senão não teria durado nem uma semana lá, mas mesmo assim, quem gosta de ser molhada a toda hora e ainda por cima com aquele odor desagradável. Um dia minha dona chegou para passar as férias e reparou que ninguém sentava em mim. Como eu tinha um jeito confortável, ela chegou perto de mim, e ao notar meu cheiro, mandou o empregado me colocar imediatamente no sol. Passei um dos maiores sufocos da minha vida. Ficava no sol o dia inteiro. Comecei a ficar esturricada como um frango no espeto. A noite voltava para a varanda e levava mais um jatos de urina dos cachorros. Todos os dias das férias de verão, passei por isso. Quando minha dona resolveu ir embora, vendo que meu cheiro não saiu, mandou me jogarem num depósito escuro de coisas velhas. Fiquei lá uns tantos anos junto a enxadas, pás e outras ferramentas que raramente viam a luz do dia. Vocês pensam que foi ruim? Que nada... esses foram bons anos. Só havia uma pergunta que eu me fazia constantemente. _ Porque os humanos não sentavam em mim?_
Minha dona ficou muito velha e a filha dela assumiu a casa. Um dia olhando os cacarecos, era assim que chamavam a todos que ficavam no tal depósito, minha nova dona se encantou comigo. Nessa época, depois de estar ali por mais de trinta anos, não havia mais cheiro ruim em mim. Pelo menos era isso que eu pensava. Fui parar numa sala muito interessante, onde pessoas eram atendidas pelo meu dono de hora em hora. Meus companheiros eram uma estante cheia de livros que vivia reclamando de suas prateleiras estarem muito pesadas, uma mesa com abajur, um tapete persa, uma poltrona, um divã e um quadro com uma foto de um velho de barba branca e óculos de graus redondos. Dou uma balançada para quem adivinhar o que meu dono fazia. Claro... era psicanalista! Mas vocês nem imaginam para que eu servia. Só sentavam em mim, aqueles que se recusavam a deitar no divã. Não era infeliz nessa época sabe por que? As pessoas que se deitavam no divã choravam muito deixando o pobrezinho encharcado de lágrimas, enquanto eu... pouquíssimas pessoas sentavam em mim e assim mesmo acabavam no divã. Parece que isso se dava no começo de uma tal de época de transferência. Muitas vezes tive vontade de perguntar ao meu dono o que eu tinha de errado por não merecer que todos sentassem em mim. Mas foi num dia que um cliente dele falou em varanda é que me recordei do começo da minha vida e entrei em depressão. Muitos clientes tinham depressão e achei a palavra perfeita para o que eu sentia. Depois do gato Gertrude, ninguém realmente se importou comigo. Ninguém tinha ciúme de mim, nem me disputava. Foi aí que lembrei que nunca um ser humano tinha mostrado carinho comigo. E a cada sessão que acabava, mais deprimida eu ficava, pois nem aquelas pessoas sentavam em mim mais do que três meses e já iam me trocando pelo divã. Um dia o filho mais novo do meu dono trouxe pra casa um filhote de poodle. O cachorro era endiabrado, e o meu dono vivia recomendando que não deixasse ele entrar no consultório. Nessa época meu dono estava trabalhando menos e ganhando mais, portanto a sala as vezes ficava aberta. Um dia o cachorrinho chegou de mansinho, encostou a pata pequena na minha perna e me balançou. Ele correu assustado mas depois repensou o susto. Ora afinal eu não tinha saído atrás dele para lhe dar palmadas, então resolveu me desafiar e cada dia que encontrava a porta aberta entrava e me balançava. Já estava ficando enjoada, pois nunca mais desde o Gertrude, tinha sido tão balançada. Mas o pior ainda estava por vir. O tal cachorro já com quase um ano e os hormônios a toda, sentiu que a cadelinha pequinês da vizinha estava no cio e deu uma urinada daquelas nas minhas pernas direitas. Molhou meu assento e a almofada que ficava em cima dele. É claro que o poodle levou uma bronca do dono, mas eu acabei parando no sótão do prédio. E lá se passaram 30 anos. O que mais me lembro dessa época era da quantidade de móveis quebrados que eram jogados perto de mim, mas pior era ser roída por ratazanas. O cheiro de mofo também era terrível. Minha depressão nunca tinha sido curada e acabei vivendo ali sem muita noção de quem era meu dono, o que aumentava ainda mais meu complexo de rejeição.
Um dia houve um pequeno incêndio no sótão e depois de apagarem as chamas com um lança espuma interessante, fomos todos retirados para a calçada do prédio. Eu estava de saco cheio da vida e se conseguisse andar teria me jogado na frente de um carro qualquer. Foi aí que um rapaz muito bonito e simpático olhou pra mim. Pensei cá com meus botões ou seria com minhas almofadas rasgadas? Lá vou eu pra casa desse mané que provavelmente tem cachorro e vou ficar novamente urinada e fedida. Agora pelo menos estava cheirando a cinzeiro com espuma. O tal bonitão me colocou na carroceria de um carro de cabine dupla que devia ser estrangeiro, porque tudo nele era escrito em outra língua, e me levou. Fui a princípio para uma espécie de oficina e depois de recuperada e cheirosa fui para um Lounge.
_Vocês sabem o que é um Lounge? Eu não sei também, mas todos falam dele. É um lugar bem legal. Toca musica aos berros, as pessoas falam aos berros, os casais muitas vezes sentam um no colo do outro enroscados no meu assento e fazem ruídos assustadores._
Estou feliz por aqui. Pela primeira vez na minha vida sou disputada por humanos. Mas uma coisa está me assustando. Ouvi falar que o bonitão vai trazer uma gata chamada Raimundo pra cá. _ Ei! vocês não vão perguntar porque uma gata tem nome de Raimundo?_

Pagode me gusta mucho! - Eugênia Kós

Foi um numero que seduziu Hoachim ...2469...
Numero comum, sem grandes significados...mas não para Hoachim.
Quando ele me encontrou naquela loja chiquézima em Madrid eu reluzia no salão da loja. Sou uma autentica “Barcelona” e, Uma excelente (pra não me desgastar em elogios) criação de Mies van der Rohe (1886-1969), que mais do que qualquer outra, imortalizou este arquiteto como grande ícone do Design do século XX. Além de atuar como professor e diretor da Bauhaus, primeira escola de Desenho Industrial, Mies também é criador de uma das frases mais famosas no design que se aplica até hoje em qualquer área, "Less is more" (Menos é mais).
As mãos bem tratadas de “Ho” alcançaram displicentemente a minha etiqueta e ele viu meu numero enquanto esticava o pescoço para admirar uma moderníssima luminária pendurada no teto que pretendia comprar para Hanz. Ele se apaixonou por mim e me comprou por um preço imperial!
Fiquei tão ansiosa e insegura como noiva de casamento arranjado, afinal não conhecia meus proprietários nem sabia onde ia morar, não conhecia Paris...mas cadeiras não tem opinião.
Fui cuidadosamente encaixotada e despachada para a casa de Hanz e Hoachim.
Em silencio, no centro da sala, encaixotada escutei a chave introduzida na porta. A porta se abriu.
- Cherie, já almoçou ? Nossa, que caixote enorme é esse? Noooosssa, veio daquela loja em Madrid! O que você comprou? Nem me disse nada! O que é, o que é ? Conta looogo!
-É pra você! Abra! Meu presente de aniversário!
- Jura?!!! Ah, querido, o que é?
E foi rasgando os papéis dourados que Ho usara para embrulhar o caixote ...
- Se não gostar pode trocar...
Fitas cortadas, martelo arrancando pregos, bolinhas de isopor por todo o apartamento, os yorks latiando excitados e os risos alegres de ambos. Quando eu finalmente surgi vi os olhinhos azuis de Hanz brilhando
- Uma cadeira Barcelona!!! Autentica!!!Obrigado, querido! Adorei! Sempre quis ter uma assim aqui em casa!
Ele acariciava as minhas almofadas, os yorks pularam sobre mim fazendo cócegas, todos ríamos felizes..
- Toda cromada, que acabamento! Estofamento de pele de cabra! Esse tom de havana é perfeito, combina tão bem com nossa sala! Adoramos!
Hanz abraçava Hoachim com entusiasmo, a sua felicidade era tão contagiante que me senti uma cadeira muito sortuda.
- Observe o numero de serie!- disse Hoachim
Hoachim mostrava uma das tábuas do caixote com o numero estampado, idêntico ao do certificado e da gravação na estrutura cromada.
- 2469! Incrível! Dois de abril de mil novecentos e sessenta e nove, nosso aniversário! Como foi que você encontrou essa jóia?
- Eu não resisti, tinha que comprá-la para nós. Entrei na loja por causa daquela luminária que você se apaixonou na nossa ultima passagem por Madrid, lembra? Mas quando vi a cadeira...
Hanz dava pulinhos de alegria e me arrastou até um lugar de destaque na sala, bem defronte à janela, sobre um belíssimo tapete. Ao longe eu podia admirar a Torre Eiffel. Sobre mim eles dispuseram uma bela almofada de brocado com o monograma do casal bordado em ouro: “H&H”. A coté um baú de sândalo chinês apoiando vaso de raras orquídeas tagarelas que repetiam as histórias vividas em um distante país tropical.
Todas as peças da sala eram estrangeiras. Eu só entendia a lingua das orquídeas, bem parecida com o meu castelhano, fora elas eu não tinha com quem conversar...o tapete falava persa, o baú era chinês, a mesa da sala de jantar era uma sueca gelada, a luminária era russa...Tudo muito lindo mas eu estava deprimida, nada acontecia além das reuniões onde todos circulavam entre betises tilintando cubos prateados de gelo. Ninguém se sentava em mim...eu não era um quadro, gostava de participar, sentia saudades dos tempos da minha infancia vivida na loja em Madrid...
Um dia Hanz e Hoachim brigaram, Hoachim foi embora e levou os yorks... Hanz chorou por meses e meses e meses...eu também, quase enferrujei!
Quando Hanz parou de chorar novas festinhas começaram, sons de bossa nova, um sambinha aqui, um chorinho ali e numa dessas pautas surgiu o Jodilson, um brasileiro. Acariciava o cavaquinho nos bares da Lapa quando foi convidado para se apresentar em Paris. Simpático, moreno de praia, sedutor e animado. O brasileiro foi ficando, cantando, tocando e fazendo Hanz sorrir novamente. Eu também. Logo a casa ficou animada, cheia de pessoas coloridas e balouçantes...a ópera foi substituída por samba e pagode, os copos de cristal por copos de caipirinha.
Jodilson tinha uma irmã, a querida Mariceia, porta-bandeira vitalícia da Magnífica Escola De Samba Abolidos do Irajá. Ela também viera a Paris com a Escola para sambar nos salões parisienses e esquentar o frio inverno da cidade-luz. Num dia de descanso Hanz ofereceu uma “feichoade” à cunhada e aos passistas da escola e, depois de muitos copos, cansada dos saltos astronômicos Maricéia se “ajogou” sobre minhas almofadas para descansar a morenice.
- Cruz credo Hanz, que cadeira mais gostosa!- aconchegou-se suspirando.
O alemão, querendo agradar o namorado Jodilson por tanta felicidade e por te-lo feito esquecer o antigo amor, me presenteou imediatamente para a Mariceia!
Entre pandeiros e cuícas fui novamente despachada de Paris direto para Abolição, Rio de Janeiro, Brasil! Maior calorão, muita cantoria, vozes por todos os lados...No início fiquei assustada mas logo me acostumei.
O marido da Mariceia, um negão muito simpático chamado Jorjão, não gostou do cromado da minha estrutura porque lembrava o pára-choque do seu fenêmê, conseqüentemente lembrava trabalho e esse não era o forte do negão...então ele convenceu Mariceia a deixá-lo me pintar.
Voltou da esquina com as mãos cheias de lixas e trinchas, varsol, estopa, uma latinha de zarcão e outra de tinta esmalte azul real. Estendeu folhas de jornal no chão do quintal e me atacou, arranhou todo o cromo com lixa 120, me besuntou de zarcão laranja, abriu uma cerveja para esperar o zarcão secar e na hora da tinta... borrou de azul as lindas almofadas de pele de cabra havana...
- Xiii, a gostosa vai me matar...
Esse era o apelido “caseiro” da Mariceia por causa da sua cintura fina, quadris largos e o glorioso derriere de passista de pedigree!
Logo ela veio flutuando sobre seus tamanquinhos de verniz que expunham pezinhos bem tratados com unhas pintadas de vermelho-paixão, eu escutava de longe os saltos de madeira marcando os passinhos no chão.
- Nêgo, afasta...Deixa eu ver como tá ficando... JORJÃO!!! você borrou as almofadas! E agora?
- Ah, Gostosa, num briga comigo não...olha só que azulão bonito! Já tenho a solução! Eu já tava até achando mermo que a gente devia fazer umas almofadas coloridas, essas aí não combinam com o nosso “cafôfo”, que vc acha?
- Taí, meu nêgo, gostei da sua ideia! Acho que a cadeira vai ficar muito mais bonita!
Mariceia chamou uma colega para dar opinião, mediram as almofadas e tomaram o rumo de Madureira. Voltaram com um chitão florido e convocaram a costureira da Escola que produziu minhas novas almofadas. Fiquei um espetáculo! Depois da reforma do Jorjão fui aceita pela comunidade e meu numero de serie virou piada lá no bairro. Agora todos sentam em mim durante as famosas feijoadas da Mariceia lá na Abolição.
Ah, e o pagode?
-Pagode me gusta muchissimo!
Hanz, que aparece todo carnaval com Jorjão, me encontrou azulona e achou lindo!
- Que crriatifo, Marriceia! Adorrei esse tecido florrrido! Tão carrrnavalesque! Marravilha!
Logo a batucada recomeça, as caipirinhas alegram a galera e gente, eu tô muito feliz!!!






Cadeira Barcelona
Márcia Almeida, JBblog

Uma excelente criação de Mies van der Rohe (1886-1969), que mais do que qualquer outra, imortalizou este arquiteto como grande ícone do Design do século XX. Além de atuar como professor e diretor da Bauhaus, primeira escola de Desenho Industrial, Mies também é criador de uma das frases mais famosas no design que se aplica até hoje em qualquer área, "Less is more" (Menos é mais).

A cadeira Barcelona foi desenhada especificamente para mobiliar o pavilhão alemão na Feira Mundial de 1929, em Barcelona. Mesmo já tendo várias outras criações, Mies insiste em algo novo devido as exigências que tinha em mente. A cadeira deveria condizer com a idéia de que um pavilhão nacional representava um lugar onde se celebram valores coletivos. Mies adota como referência a sella curulis, cadeira de Estado da antiga Roma, emblema de poder imperial. Já como obra de arte, expressa duplo caráter - graça e dignidade. Uma aula de design clássico, simplicidade e beleza.