quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O DESPACHO - Ana Lidia Pimentel

Carlão, Zé, e Norminha, eram amigos de infância. Dividiram o mesmo bairro e a mesma rua por muitos anos. Eram amigos de verdade. Os três estavam sempre juntos. A casa na árvore, construída no quintal de Norminha, era o refúgio deles.
Era na casa da árvore que os meninos perguntavam “coisas de menina” para Norminha que, com ares de professora, discursava com doçura, sobre os assuntos que ela mesma não compreendia muito bem. Da mesma forma, ela perguntava “coisas de menino” para eles que, às gargalhadas respondiam, muito envergonhados, o que supunham ser as respostas certas.
Veio a adolescência e Zé começou a namorar Norminha.
Vieram os anos de faculdade. Norminha formou-se em psicologia, Zé formou-se em direito e Carlão, em economia. Carlão era um verdadeiro “Midas”. Tudo que ele aplicava em operações financeiras aumentava vertiginosamente. Tanto era assim, que Carlão começou a dar consultoria em investimentos, coisa que lhe rendia um bom dinheiro no fim do mês.
Norminha e Zé se casaram. Passados dois meses, Carlão apareceu com uma namorada nova. Chamava-se Marlene. Carlão estava completamente enfeitiçado por ela. Era uma dessas criaturas insuportáveis que só via qualidades, nela mesma e constantemente menosprezava Carlão. A única coisa que ela realmente gostava no Carlão era a generosidade com que ele a presenteava constantemente.
- Essa “piranha” está explorando o Carlão e o bobo nem percebe! – disse Norminha indignada.
- Calma - pediu Zé. - Nós precisamos é fazer alguma coisa para abrir os olhos do Carlão. Vou ter uma conversa com ele. -
Zé chamou Carlão pra conversar e disse tudo que Norminha e ele sentiam a respeito de Marlene. Mas, Carlão estava cego e surdo aos apelos da razão.
Carlão e Marlene se casaram. Marlene continuava menosprezando Carlão, só que agora também o ridicularizava, de preferência, em público, deixando-o constantemente constrangido. Norminha e Zé não achavam aquilo normal num casal com tão pouco tempo de vida em comum.
– “Há algo de podre no reino da Dinamarca!”. –Era o que Norminha costumava dizer.
Algum tempo se passou quando, num belo dia, Norminha viu Marlene entrar no carro de um homem que ela não conseguiu reconhecer. Norminha, que achava Marlene uma “biscateira” não titubeou. Seguiu-os. O carro deles entrou num motel. Norminha ligou imediatamente para o Zé, que partiu, sem pestanejar, para a porta do tal motel, com máquina fotográfica e tudo mais. Na saída do motel, Norminha e Zé testemunharam e fotografaram Marlene, ainda trocando beijos com o tal sujeito.
- Puta que o pariu! A filha da mãe está traindo Carlão! E agora? O que vamos fazer?
– exclamou Zé exaltado.
Norminha e Zé começaram a analisar a situação sob o ponto de vista psicológico e jurídico. Carlão ia se dar mal. Marlene era casada com ele com comunhão parcial de bens. Tudo que Carlão conseguiu juntar, com trabalho, depois do casamento, teria que ser dividido com Marlene. Carlão tinha sido traído e ainda ia ter que dar dinheiro pra vagabunda ir curtir com o amante.
- Quais são os bens do Carlão?- perguntou Norminha.
- O apartamento e o carro. - esclareceu Zé.
- E ele não pode vender?- indagou Norminha.
- Para negociar o carro ele não precisa da assinatura dela, mas o apartamento ele não pode vender sem que ela concorde e assine. - respondeu Zé.
-E se por um milagre, ele conseguisse que ela concordasse e assinasse a venda, o que ele pode fazer com o dinheiro que receber? – perguntou Norminha.
- Bem, em tese, ele pode fazer o que quiser com o produto da venda. - esclareceu Zé.
- Acho que tive uma idéia, mas tudo vai depender de como Carlão vai receber a notícia da traição e do que ele vai querer fazer com a Marlene. Vamos procurar o Carlão. - finalizou Norminha.
Norminha e Zé combinaram um encontro com Carlão, à noite, na casa deles.
Quando Carlão chegou à casa de Zé e Norminha, os amigos começaram a difícil missão de contar sobre a traição de Marlene. Com as fotos, que serviram como prova, não havia como duvidar. Carlão ficou perdeu o chão. Nunca se viu Carlão chorar tanto.
De repente, Carlão parou de chorar e disse - Vou dar o troco nessa vagabunda! Só não sei como. -
- Mas, eu sei! – disse Norminha. – Você vai ter que ter muita coragem e paciência, mas acho que vai dar certo.
Carlão enxugou as lágrimas e começou a prestar atenção a tudo que os dois amigos lhe diziam. Depois de umas duas horas de conversa Carlão disse resoluto: – Eu topo! Faço qualquer coisa para que Marlene não leve a melhor. –
Carlão foi para casa.
Marlene, que o esperava, indagou. – Isto são horas?-
- Desculpe-me, meu amor, tive que jantar com um cliente e... sabe como é... - disse Carlão mentindo.
- Tá. Eu vou dormir. - disse a megera.
Carlão ficou na sala refletindo um pouco. Repetia para ele mesmo que não podia deixar que ela desconfiasse de nada. Um pouco mais calmo, foi tentar dormir também.
No dia seguinte, bem cedo, Carlão começou a por em ação o plano.
_ Estive pensando... – começou Carlão.
- Pensando? Você? - debochou Marlene.
Carlão apertou uma mão contra a outra com força pra não perder o controle.
- Pois é. Estive pensando que poderíamos nos mudar deste bairro e ir para um bairro melhor. Que tal?- perguntou Carlão.
Marlene ficou radiante e foi logo dizendo: – Que maravilha! É tudo com o que sonhei!
- Bem, então, vou procurar um novo apartamento. OK? – Perguntou Carlão.
_ OK!OK!- respondeu a interesseira.
Dois dias se passaram e Carlão levou Marlene para visitar um apartamento que ele havia selecionado. Era um excelente apartamento em um bairro classe A.
Marlene ao ver o apartamento logo se encantou.
- É esse! É esse! - disse Marlene quase sem respirar.
- Parece ser bem caro. - disse Carlão.
- Por favor! Pelo nosso amor! Vamos comprar este! – implorou a vagabunda.
- Está bem. Vou ver o que se pode fazer. – disse Carlão.
No dia seguinte, Carlão chegou em casa cabisbaixo e Marlene perguntou o que estava havendo.
-É que o apartamento que você gostou é mais caro do que pensei. Não vamos poder comprá-lo. - lamentou Carlão.
_ Ah! Não... Não vou me conformar. Você vai ter que dar um jeito. – disse ela emburrada.
-Bem, na verdade, existe uma solução, mas não acho que seja a mais indicada.
Teríamos que vender este apartamento onde moramos para dar de entrada no outro.
O restante terá que ser pago em prestações. – esclareceu Carlão.
- Então é isso que vamos fazer! Não tem mais discussão. Vamos vender este apartamento pra poder comprar o outro. - decidiu Marlene.
- Está bem. Se você quer assim meu amor... Depois não diga que não te orientei bem. – advertiu Carlão.
- Eu não preciso de você para me orientar. Vamos fechar negócio. – concluiu Marlene.
Uma semana depois, Marlene e Carlão foram ao cartório assinar a escritura de venda do apartamento. Carlão recebeu a quantia em dólares, dizendo ser exigência do novo proprietário do apartamento. Marlene voltou para casa, enquanto Carlão, que disse que iria dar o sinal do apartamento novo, pegar recibo e tratar dos papéis de compra, na realidade, foi ao escritório de Zé que já o estava esperando.
No dia seguinte, Carlão, como sempre fazia, saiu para trabalhar. Marlene, como já era de se esperar, foi encontrar-se com o amante. Carlão, que desta vez, não havia se afastado da esquina, viu Marlene pegar um táxi.
Ele voltou ao apartamento. Em seguida chegaram Norminha e Zé. Os três conversaram bastante e acertaram os detalhes finais do plano. Norminha e Zé saíram para por mãos à obra. Carlão escreveu um bilhete, pegou uma pequena valise com uma muda de roupa e saiu batendo a porta do apartamento. Passou pela portaria, cumprimentou o porteiro e ganhou a rua. Nunca mais ninguém o viu por aquelas bandas.
No fim da tarde, Marlene voltou ao apartamento. Surpresa, ela encontrou o apartamento completamente vazio e apenas um bilhete dizendo: “Antes tarde do que nunca. Adeus”. Ainda atordoada, não conseguia entender o que havia acontecido.
Correu ao novo apartamento e ao chegar lá, viu uma mudança entrando. Mas, não era a sua mudança. Agora, estava tudo muito claro. Ela havia sido enganada por Carlão.
Voltou ao antigo apartamento completamente vazio e de lá, ligou para o Zé.
- Alô, Zé? Já entendi tudo. Mas, eu tenho meus direitos! – esbravejou ela.
- Direitos sobre o quê? – perguntou Zé.
- Sobre tudo o que é do Carlão. Meio a meio. – disse ela.
- E o que é que é do Carlão?- indagou Zé.
- O carro, o apartamento... Tudo! – berrou Marlene muito irritada.
- Que carro? Que apartamento? – ironizou Zé.
- Filho da mãe! Aquele idiota me passou para trás e vocês o ajudaram! Eu... – Marlene ouve um clique. - Alô! Alô!... Desligou!
Do outro lado, Zé e Norminha comemoravam o sucesso do plano.
No dia seguinte Zé entrou com o pedido de divórcio de Carlão. Sem bens a dividir, sem filhos e com as provas de adultério, o processo correu sem problemas e quando ficou concluído, Zé e Norminha foram dar a notícia a Carlão. Morando numa casa alugada na praia, Carlão nem parecia aquele de antigamente. Estava bem, mas ansioso para retomar sua vida e seu trabalho, sem temores.
-E aí trouxeram o despacho?- perguntou Carlão rindo
-Claro que trouxemos o despacho! O do juiz. – responderam, rindo também.
- E que DESPACHO!- disseram os três em coro e rindo.
E Carlão aliviado finalizou: – Este é o despacho que despachou a megera! -

terça-feira, 13 de novembro de 2007

QUEM SE LEMBRA DO FARINHA? - Guga Casari

As areias do tempo engolem cruéis a pegada de homens comuns. Por que com Otávio seria diferente. As palavras que evitavam sair de sua boca por causa da gagueira eram pronunciadas com alento apenas suficiente para romper a distancia entre ele e o próximo. Andava de lado em ritmo próprio, sempre tropeçando em degraus impostos por sua perna mais curta. E como tinha a pele muito clara, era quase albino e não pôde ir trabalhar na roça. Por isso o pai lhe ensinou alguns rudimentos do oficio de carpinteiro vendo nisso uma solução para o menino conseguir oficio. Nas fabricas onde trabalhou não tinha antipatias, nem grandes amizades, e como tinha começado a trabalhar muito jovem aposentou-se cedo. O único reconhecimento duradouro que recebeu de seus pares foi o apelido de Farinha, por que, coberto de pó de serra, o branco Otávio era uma imagem notável.

Noivou apenas uma vez, o nome da moça era Leopoldina. Para Ele, Leopoldina foi um anjo que o aceitou, mas ela morreu bem antes que pudessem falar de casamento. Tímido, ele nunca mais conseguiu se aproximar de outra, conformando-se com a solidão.

São Francisco era o santo de sua devoção discreta, para o qual sempre orava. Fora o trabalho era seu companheiro de todo momento. Isso sem contar com os que eram seus únicos amigos, André e o Zé Formiga. O rústico e simples André era canteiro, um tipo que já não se encontra mais, Ele dava forma a pedra com ponteiros de ferro. Zé formiga era um negro alto e bem magro sempre muito calado, uma chaminé constantemente fumando. Apontava o jogo do bicho ali na região. Diziam que era “pé frio”, pois ninguém que apostou com ele nunca ganhou muito dinheiro.

Otávio morava num quartinho do sobrado azul na Rua Sete de Abril. Comia sempre na pensão da Dirce, já que a comida lá não era ruim, e na média dessas coisas até que o lugar era limpo, se você relevasse o verniz de frituras sem fim na parede.

Depois de se aposentar Otávio continuou a fazer biscates. A aposentadoria, claro, era pouca e um troco a mais era bem vindo, mas o motivo real era que o trabalho era tudo o que conhecia. Quando trabalhava se sentia bem e em paz. Trabalhava quieto, não gostava nem de rádio ligado. As vezes parecia antipático porque se alguém chegasse de repente pra falar algo ele custava a deixar o que estava fazendo. Isso lhe trazia poucos clientes, mas também lhe afastou de muitos azares. Sem o convívio diário com colegas de fábrica, Otávio se voltou ainda mais para dentro, se tornou alheio do mundo e das pessoas em geral.

Faleceu quando estava florida a cerejeira japonesa ao lado de sua pequena oficina. André que achou estranho Otavio não aparecer pro jogo de damas, o encontrou naquele domingo, justo para o descanso. Seria enterrado como indigente não fosse pelas economias deixadas numa latinha de leite em pó, exatamente bastantes para o seu funeral. Os dois amigos cuidaram do enterro simples no caixão de pinho. Não ficaram pendências, suas encomendas estavam todas entregues.

Fora Zé Formiga, a Odélia cozinheira da pensão, André e Marcelo que era seu aprendiz ninguém foi velar Otávio. Os quatro que foram notaram que o falecido tinha a face tranqüila.

No quarto do sobrado não ficou nada que indicasse quem havia morado lá, quase no mesmo dia do enterro a TV sumiu e o dono do quarto mandou jogar fora a geladeira velha, com o fogareiro enferrujado, mais todo o resto que havia. As ferramentas ficaram com Marcelo. O dono da garagem onde era a oficina ficou com a serra elétrica pelo pagamento de alugueis.

Otávio não deixou nada pra traz. Não se sabia se tinha família, primos, irmãos. Dos que poderiam se lembrar dele André se foi primeiro, falecendo logo depois do amigo. Zé Formiga foi apontar o bicho noutra região, onde não sabiam do seu pé frio. E quem fosse à pensão da Dirce meses depois já não a encontraria mais lá, Odélia que segurava o tranco da birosca pediu as contas sem explicação, e mudou de cidade.

Sem deixar pista, Otavio e sua vida poderiam bem ter evaporado, ou nem existido.

Só que não foi assim que aconteceu.

Os monges do mosteiro que não conheceram Otávio, o têm no coração com carinho. Vêem no altar nascido da prancha grossa de madeira, antes usada pra subir um pesado trator de esteira num caminhão, a dedicação absoluta do artesão. Este altar foi uma de suas últimas obras, e conta um milhão de histórias, parecendo amparar as dores, sofrimento e o próprio peso do mundo, dum modo tão leve, gracioso e discreto que assombra.

A velha senhora não sabe quem produziu o pequeno castiçal pelo qual tem grande apreço. Achou-o numa loja. Especial na aparência por um pequeno nó na madeira, e pela forma que suas fibras se trançam no seu torneado. Para ela é um companheiro corajoso de orações nas suas noites insones, que a diverte pelo absurdo. Um castiçal de madeira que pode se inflamar, consumido pela luz que serve.

O Professor não sabe quem fez a caixinha lisa e encaixada que sempre se quer tocar. Foi um presente de aniversário da esposa. Eles a usam para guardar e proteger bons sentimentos, escritos em papelotes coloridos.

Odélia, a cozinheira da pensão, cozinhou para Otávio tantas vezes sem nunca trocarem uma palavra, até aquela ultima sexta feira. Naquele dia Odélia tinha errado no sal da couve e no tempero do feijão, coisa que nunca acontecia, e Otávio a viu chorando, cansada e sem esperança. Descobriu que o filho tinha roubado suas economias, guardadas para tratar da vista da sobrinha. Num gesto Otávio lhe fez uma banqueta e a presenteou.

– Pro seu descanso Dona Odélia.

Foi só o que disse, talvez suas últimas palavras, que lhe saíram claras e sem titubeios.

Odélia sentou-se e descansou as pernas cheias de varizes, grata lhe deu um beijo no rosto e fritou pasteis inesquecíveis. Nessa banqueta Odélia descansou muito, e se refez. Lembrou do amor ao filho, planejando a aproximação. Naquele templo minúsculo Odélia abraçou o rapaz, choraram juntos, e Ele jurou se emendar. Emendando-se achou um bom caminho, nesse bom caminho casou e teve um filho que amava. Um simples gesto compassivo de amor, gravado na eternidade do Coração.

Por Guga Casari

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

NAVEGAR...E´ PRECISO? - Eugênia Kós

Eu nao sabia o que mais amedrontava meu pai, se o barco velho ou o genro novo.
- Minha filha, você tem certeza de que é seguro?
O barco velho chamava-se Lépido. Era um veleirinho de madeira, 27 pés, feio e apertado mas era o orgulho do genro do meu pai, e meu também.
Era muito estável e veloz, ostentando as velas brancas no topo do mastro ele deslizava oblique ao mar com a elegancia de quem tem pedigree. For a d’água e sem pudor nenhum ele exibia todos os seus motivos: uma quilha de 1,80 m arrematada por um pesado torpedo de chumbo surpreendentemente voltada para a proa o que dava a impressão de alguém tê-la posicionado ao contrário.
Marcos era o capitão daquela “máquina” `a vela que nos levaria às paradisíacas praias da Ilha Grande no feriadão. Eu confiava no veleiro e na competência do capitão apoiada na minha completa inexperiência… Aquela seria a minha estréia em mar aberto.
Ainda estava escuro quando despertamos.
Eu, saltitante em havaianas brancas fiz uma revisão mental da bagagem enquanto escovava trinta e dois dentes. Nina vinha sonolenta arrastando os chinelinhos. Carimbei um beijo estalado em sua bochecha para incentiva-la na eardua caminhada até o sabonete.
- Bom dia, princesa, dormiu bem?
Ela grunhiu um adolescente “Hãnhãn…”
- Não esquece de levar um livro…vamos passar dias sem televisão…
- Ihh, mãe!..tá legal...saco!
Na sala do apartamento já aguardavam dois volumosos sacos de velas, bagagem, guloseimas, ferramentas…e uma garrafa de uísque. Torci meu inútil nariz de tripulante para a garrafa do capitão mas o capitão foi inflexível: pelas leis de Netuno o uísque é permitido a bordo como combustível energético. e quem manda é o capitão. Å garrafa seria embarcada e a tripulação que se confomasse…
Como eu estava feliz com a chance de reunir minha familhinha decidi que nada me aborreceria. Estava apaixonada, o barco era lindo e eu pretendia pescar nada menos que uma gorda anchova.
Chegando ao clube pulei para o convés do barco a fim de cumprir minhas tarefas de cabine. No pier Marcos conversava com um amigo e escutei algo sobre nuvens e frentes frias…Interpelei imediatamente o capitão:
- Marcos, por um acaso eu ouvi o caro colega mencionar uma frente fria chegando ao Rio?
Impaciente mas com a intenção de me tranquilizar , ele esclareceu em voz alta:
- Eu vi! Não se preocupe. A nuvenzinha do mapa é tão desprezível que não vai atrapalhar nosso fim de semana.
Confiante continuei nas minhas tarefas organizando meu veleirinho pequeno e frágil e, por um Segundo, me senti apreensiva. Mas passou logo.
Empurrei os sacos de vela para o lado a fim de conseguir um espaço confortável para Nina se aconchegar no balanço das ondas.
- Todos a bordo – conclama o capitão – o barco vai partir!
Marcos ligou o motor ingles que “nunca enguiçava” e partimos levando nossos planos felizes.
No barulho do motor 2 tempos o dia amanheceu menos glorioso do que eu gostaria. Admirei a imponência do Pão de Açúcar e depois estiquei o olhar até o horizonte. Lá for a os “carneirinhos” mostravam que o vento estava forte. Nada bom…
- Preparem-se, vamos chacoalhar muito – falei para meus apreensivos botõezinhos
Retomei as atividades e Nina resmungou porque a acordei durante as minhas manobras com as velas.
- Ops, filha. Tô te atrapalhando, né? Desculpe, é rapidinho…
O vento soprava de frente levantando a proa e afrontando nosso corajoso Lépido que corcoveava avançando, com a ajuda do motor, de encontro ao sudoeste.
De repente nosso Seagull, aquele tal motor que nunca enguiçava, engoliu um saco plástico, engasgou, tossiu e…morreu!
No refexo do olhar do capitão entendi que a manobra teria que ser rápida, alcancei o cabo da vela que descansava na proa, enrolei-o na catraca e fui rodando a manivela até que a vela alcançasse o topo do mastro, o capitão acertou a regulagem dos panos com precisão e o vento assumiu seu posto. Lépido respondeu adernando como um veleiro de raça, sensível e obediente aos comandos.
Nina apareceu da porta da cabine, observou o horizonte e diante da imensa nuvem escura que viu sugeriu que voltássemos para casa.
Eu achei que a sugestão era bastante sensata mas o capitão respondeu com fé:
- Calma aí! De jeito nenhum! Você vai ver a praia que nós vamos curtir amanhã
Observei Nina voltar para o seu aconchego num resmungo desdenhoso
– Até parece…praia amanhã…?
A âncora, os cabos, os coletes salva-vidas estavam sob uma montanha de bagagens… Mas claro que não seriam necessários. Afastei os maus pensamentos,
Mas por causa de outros maus pensamentos lembrei que não havia nenhum lugar abrigado entre o Rio de Janeiro e a Ilha Grande…
O vento aumentava, a chuva engrossava, nada ficava no lugar. Só Nina…quietinha e encolhida na proa. O veleiro encontrava muita dificuldade para prosseguir porque estávamos com uma vela inadequada.
- Marcos, cadê a storm-jib!?
Percebi que ele engoliu em seco.
- Eu não trouxe, achei que não íamos precisar…
E agora? E agora???! Nossa storm-jib, a vela de tempestade, a única vela adequada não estava no barco! Minha confiança no capitão foi por água abaixo, fiquei furiosa com a irresponsabilidade. Temi por nós, principalmente por minha filha. Por outro lado não seria sensato discutirmos naquele momento portanto só me restava colaborar. A inconsequência teria que ser compensada pelo talento e Marcos precisaria de ajuda.
E tudo piorava, o radio ficou sem bateria, o dia escureceu, o vento apertou, a chuva engrossou e o medo ia me intoxicando. O barco chacoalhava, tremia, subia e descia, corcoveava, brigava com as ondas, não queria desistir mas também não avançava dinte do voluntarioso sudoeste.
Ilha Grande estava à vista, tão perto…
- Vamos voltar!! – subitamente veio a decisão do capitão .
- O que??? Mas Ilha Grande está alí!
- Não vamos conseguir, Olívia! São cinco da tarde, já está escurecendo.
Estávamos velejando há dez horas!
Sem hesitar, numa manobra rápida Marcos girou o barco e Lépido atingiu uma velocidade que eu nunca vira antes. O mastro vibrava assustadoramente enquanto eu recolhia vela de proa. Rezei todas as orações conhecidas porque perder o mastro alí seria muito pior do que aterrorizante.
A água invadia a cabine e eu enchia, para depois esvaziar, baldes e mais baldes de mar para aliviar o peso do barco.
A paisagem desapareceu no lusco-fusco da tarde mal-humorada. Nosso caminho logo ficaria na mais completa escuridão e barco não tem farol!
Marcos se sentia heróico, cheio de adrenalina enfrentava a natureza como um Ulisses demente!
Eu estava em pânico, um sono insuportável me invadiu e manter os olhos abertos com as pálpebras tão pesadas se tornara muito difícil, a reação física me assustava porque era desconhecida e eu não sabia como supera-la! Meu coração batia na boca…
E se aquele irresponsável caísse na água? E se o barco afundasse? E se…? E se…? Eu não saberia o que fazer . Precisava muito dele e me esforçava muito para abrir os olhos depois das longas piscadas, só para comprovar se ele ainda estava no leme.
Por devoção a Netuno recorri à garrafa de uísque. Depois de duas ou tres doses uma vaca já mugia dentro de mim. Não… talvez fosse um touro, um miúra negro, preso e furioso, escavando o chão com os cascos, exigindo uma morte sangrenta! Estava dividida entre essa enorme vontade de assassinar o capitão e outra de chorar no ombro dele…
Graças à Iemanjá, a Deus e a todos os santos o capitão continuava dominando a situação. Eu o observava atentamente e, se vislumbrasse o menor sinal de apreensão nele, desabaria. Parecia um filme de terror ao vivo! O oceano estava dentro do barco e o barulho era apavorante.
As únicas luzes na noite eram as dos prédios, postes e faróis dos carros circulando nas ruas da Barra. No elevado do Joá os carros passavam inocentes. As enormes ondas se esticavam tentando alcança-los, rugiam furiosas mostrando os dentes, espumavam de raiva, investindo contra a encosta de pedra.
Passamos no escuro, silenciosos, invisíveis. Nem as ondas, nem meu pai sabiam onde estávamos. Ninguém sabia. Só Netuno.
Sozinha, sentada no fundo do barco eu observava a cena surrealista da água correndo de proa à pôpa como num rio dentro da cabine. Minhas pernas obstruíam o curso d’água provocando ondas que, ao encontrar o dique humano, quebravam me encharcando até a alma. Nada continuava seco ou imóvel. Só Nina, sobre o beliche da proa.
Marcos recebia suas doses de uísque sorrindo torto para me tranquilizar e eu continha minha fúria assassina enchendo baldinhos com água do mar.
Rezei até para Sao Conrado que surgiu diante dos meus olhos, depois Niemeyer, e olha alí o Vidigal…LeblonIpanemaArpoadorCopacabanaLemePraiavermelha…olha! O Pão de Açucar! Olha o Pão de Açúcar!!!!
- Nina, Nina, o Pão de Açúcar!!! Estamos chegando!
Nina veio e me apertou num abraço e eu percebi o quanto ela estivera também assustada. Ignoramos o capitão e comemoramos en petit comité.
A majestosa pedreira não se abalava com as enlouquecidas ondas que a mordiam. Enquanto passávamos ela nos observava enigmática, como fazem as esfinges idôneas, ao mesmo tempo que se divertia com a nossa fragilidade.
Lépido parecia uma caixinha de fósforos flutuando frenéticamente sobre o caos das ondas embaralhadas e ventos desnorteados na entrada da baía.
Finalmente, às dez da noite, entramos nas águas abrigadas. A aventura durara quinze longas horas! Estávamos exaustos, molhados, famintos e sem velas adequadas. E sem motor…Era óbvio que o barquinho, que brigara tanto para chegar, não conseguiria alcançar o distante objetivo no clube em Niterói. E também não era uma opção jogar a âncora em qualquer lugar porque havia o risco de atropelamento por navio cego… Por estarmos indecisos deixamos o barco correr…
O veleirinho, cansado e corajoso, aproveitou a inércia e nos levou até bem perto de um enorme e escuro iate que parecia adormecido, incógnito e silencioso no seu canto. Que iate seria aquele?
Alcancei a única lanterna que ainda funcionava e procurei seu nome no casco…o facho de luz revelou que era o Lady Laura!
Aquele seria um colinho e tanto! Será que o Roberto aprovaria?
Como atrevidos vira-latas que encontram uma portaria segura para dormir resolvemos nos aconchegar alí mesmo. A sensação de alívio provocou gargalhadas e fomos dormir molhados e famintos porque nada mais parecia importar, afinal estávamos no colo da mãe do Roberto, o colo mais famoso do Brasil!

O LIVRO – Heloisa Ausier

Hoje me pergunto por que só naquele dia percebi a beleza de Marina. Apesar de cumprimentá-la todos os dias ao passar por seu sebo de livros, o “Don Quixote”, não imaginava que um dia ao entrar ali, minha vida seria definitivamente mudada.
Como sempre costumava fazer ao voltar da faculdade, entrei no sebo para procurar algo diferente para ler. Tinha lido há uns dias, as primeiras páginas de “O Pêndulo de Foucault” na internet, e excelentes críticas ao seu autor, Umberto Eco. Olhei em todas as prateleiras e não o achei, mas dei de cara com um outro livro dele que me interessou. Comecei a folheá-lo e na primeira página percebi uma dedicatória que me chamou a atenção. “Foi então que vi o Pêndulo... Lembra? Paris, 1991! Que continuemos juntas a desvendar cada segredo do amor e dos livros. E que Paris esteja sempre em nossas vidas!” Assinado “Anita”.
“Foi então que vi o Pêndulo.”, era a primeira frase do livro que eu estava procurando. Obviamente quem escreveu a dedicatória, datada de quinze anos antes, o tinha lido. Totalmente decidido a comprá-lo, tirei minhas economias do bolso da calça. Marina que estava tomando distraidamente uma caneca de café fumegante tomou um susto ao se deparar com aquela capa. Procurou imediatamente a primeira página e ao achar o que procurava, disse-me que aquele livro não estava à venda. Desculpou-se me explicando que ele estava na prateleira por engano. Senti que Marina estava extremamente constrangida com a situação, mas irredutível, quase histérica com a possibilidade de perdê-lo.
— É seu esse livro? — perguntei.
— Sim, não sei como ele foi parar na estante. — Respondeu ela.
— Essa dedicatória foi escrita para você? — Insisti.
— Foi. — Respondeu Marina mexendo sem jeito em seus cabelos encaracolados.
O telefone tocou, e ela atendeu. Fui até a outra sala procurar outro livro e voltei a tempo de ouvir o final do telefonema.
— Sozinha. O sebo está indo bem e saio com os amigos. Para mim, basta por enquanto. Não sei se quero me envolver com alguém tão cedo. — falou Marina.
Não ouvi o que a outra pessoa retrucou, mas Marina continuou.
— Agora é que você resolveu se preocupar comigo? Quando foi embora por causa daquela mulher não pensou nisso. Eu estou bem. Estou até pensando em sair... — Marina parou ao me ver chegar.
Fiquei sem graça e fingi estar olhando outra estante e ela continuou.
— ... com uma pessoa que está sempre aqui no sebo. Você sabe que tenho um fraco pelos leitores compulsivos — disse Marina rindo.
A outra retrucou alguma coisa, e Marina respondeu baixo colocando a mão no bocal do telefone.
— Não me venha com essa história de “você é que sabe”! Claro que só eu é que sei. To legal, Anita! De verdade! E se o carinha continuar a aparecer sempre no sebo com cara de garoto abandonado, eu vou fundo mesmo.
Logo após a outra falar alguma coisa, Marina se despediu sem perceber que eu tinha ouvido o resto da conversa. “Será que eu era a pessoa com quem ela pretendia sair?” conjecturei.
Desembolsei uma merreca para comprar um livro de bolso, me despedi dela e me mandei pensando que provavelmente aquela ao telefone era a Anita.
Minha necessidade em conhecer a história daquelas mulheres se tornou iminente. Estava profundamente confuso e atraído por tudo aquilo. Marina era a ligação com Anita e mais ainda, era o próprio alvo de sua dedicatória. Procurei-a no dia seguinte no sebo. Queria saber sobre a dedicatória.
— Por que você acha que eu tenho que te contar a história da dedicatória? — perguntou Marina?
— Porque eu fui compreensivo quando você não quis me vender o livro, então mereço ter minha curiosidade saciada. — disse eu sem muita convicção, mas jogando todo o meu charme.
— Vou te contar, não porque ache que você merece e sim porque não agüento mais ficar fingindo que a minha vida antes de eu vir para essa cidade não existia. — disse ela. — e também porque você é um cara muito gracinha.
— Estou ouvindo — disse, olhando dentro de seus olhos.
— Ta legal! Há vinte e três anos quando fazia universidade me apaixonei pela professora de francês. A paixão foi recíproca e logo estávamos morando juntas, num apartamento pequeno e cheio de livros. — Marina tirou da testa um cacho dos cabelos e continuou. — Moramos durante um ano em Paris, em 1991, quando Anita fez um curso de pós-graduação. Foi lá que adquirimos o hábito de ler alguns livros ao mesmo tempo e discuti-los. Para isso muitas vezes compramos dois exemplares do mesmo título. “O Pêndulo de Foucault” foi o primeiro livro que lemos juntas em Paris.
— Por isso então a dedicatória com a primeira frase? — perguntei.
— Sim, esse livro nos marcou profundamente. — respondeu Marina.
Estava na hora dela fechar a livraria, combinamos sair mais tarde.
O céu estava estrelado e a lua estava quase cheia. Andamos até achar um barzinho num porão com pouca luz e nenhuma badalação. Eu estava ansioso por conhecer melhor aquela mulher e sua vida, e ela parecia aliviada em poder contar seu drama a alguém realmente interessado em ouvir. A história de amor entre Marina e Anita não começou nem acabou de maneira diferente da história da maioria dos casais. Houve cumplicidade, companheirismo e traição!
Depois de uma pizza e algumas taças de vinho, fomos para casa conversando. Quanto mais ela falava de sua amada, mais instigado eu ficava. Já não sabia qual das duas mulheres me atraía mais. O fato é que eu estava totalmente embriagado por toda aquela história de amor. Já conseguia imaginar a mulher que eu não conhecia. Sentia seu perfume, ouvia sua voz, entendia seus pensamentos. Paramos na frente da casa de Marina, e num impulso dei-lhe um beijo. Nossas bocas se acharam com a facilidade de velhos amantes, e as línguas dançaram num ritmo frenético e apaixonado. Em poucos minutos estávamos na cama, e eu estava descobrindo uma mulher meiga e sensual. Depois de esgotarmos nossa sede de sexo, deitamos de costas e ficamos assim um tempo. Olhei para a estante e lá estava um porta retrato com uma foto. “Provavelmente era Anita” pensei. O outro lado do triângulo. Lembrei de uma música que dizia: “Why can't we go on as three?”.
Não imaginava como seria minha vida dali em diante, mas estava resolvido a aproveitar cada momento. Enquanto Marina fazia café na cozinha, por força do hábito, dei uma olhada nos livros. Reconheci a lombada de um, me levantei e o puxei. Não consegui abrir nem ler a primeira frase. Marina estava me segurando por trás. Senti sua boca nas minhas costas e suas mãos escorregando pela minha cintura. Meu corpo tremeu de desejo. Deixei o livro de lado.