segunda-feira, 12 de novembro de 2007

NAVEGAR...E´ PRECISO? - Eugênia Kós

Eu nao sabia o que mais amedrontava meu pai, se o barco velho ou o genro novo.
- Minha filha, você tem certeza de que é seguro?
O barco velho chamava-se Lépido. Era um veleirinho de madeira, 27 pés, feio e apertado mas era o orgulho do genro do meu pai, e meu também.
Era muito estável e veloz, ostentando as velas brancas no topo do mastro ele deslizava oblique ao mar com a elegancia de quem tem pedigree. For a d’água e sem pudor nenhum ele exibia todos os seus motivos: uma quilha de 1,80 m arrematada por um pesado torpedo de chumbo surpreendentemente voltada para a proa o que dava a impressão de alguém tê-la posicionado ao contrário.
Marcos era o capitão daquela “máquina” `a vela que nos levaria às paradisíacas praias da Ilha Grande no feriadão. Eu confiava no veleiro e na competência do capitão apoiada na minha completa inexperiência… Aquela seria a minha estréia em mar aberto.
Ainda estava escuro quando despertamos.
Eu, saltitante em havaianas brancas fiz uma revisão mental da bagagem enquanto escovava trinta e dois dentes. Nina vinha sonolenta arrastando os chinelinhos. Carimbei um beijo estalado em sua bochecha para incentiva-la na eardua caminhada até o sabonete.
- Bom dia, princesa, dormiu bem?
Ela grunhiu um adolescente “Hãnhãn…”
- Não esquece de levar um livro…vamos passar dias sem televisão…
- Ihh, mãe!..tá legal...saco!
Na sala do apartamento já aguardavam dois volumosos sacos de velas, bagagem, guloseimas, ferramentas…e uma garrafa de uísque. Torci meu inútil nariz de tripulante para a garrafa do capitão mas o capitão foi inflexível: pelas leis de Netuno o uísque é permitido a bordo como combustível energético. e quem manda é o capitão. Å garrafa seria embarcada e a tripulação que se confomasse…
Como eu estava feliz com a chance de reunir minha familhinha decidi que nada me aborreceria. Estava apaixonada, o barco era lindo e eu pretendia pescar nada menos que uma gorda anchova.
Chegando ao clube pulei para o convés do barco a fim de cumprir minhas tarefas de cabine. No pier Marcos conversava com um amigo e escutei algo sobre nuvens e frentes frias…Interpelei imediatamente o capitão:
- Marcos, por um acaso eu ouvi o caro colega mencionar uma frente fria chegando ao Rio?
Impaciente mas com a intenção de me tranquilizar , ele esclareceu em voz alta:
- Eu vi! Não se preocupe. A nuvenzinha do mapa é tão desprezível que não vai atrapalhar nosso fim de semana.
Confiante continuei nas minhas tarefas organizando meu veleirinho pequeno e frágil e, por um Segundo, me senti apreensiva. Mas passou logo.
Empurrei os sacos de vela para o lado a fim de conseguir um espaço confortável para Nina se aconchegar no balanço das ondas.
- Todos a bordo – conclama o capitão – o barco vai partir!
Marcos ligou o motor ingles que “nunca enguiçava” e partimos levando nossos planos felizes.
No barulho do motor 2 tempos o dia amanheceu menos glorioso do que eu gostaria. Admirei a imponência do Pão de Açúcar e depois estiquei o olhar até o horizonte. Lá for a os “carneirinhos” mostravam que o vento estava forte. Nada bom…
- Preparem-se, vamos chacoalhar muito – falei para meus apreensivos botõezinhos
Retomei as atividades e Nina resmungou porque a acordei durante as minhas manobras com as velas.
- Ops, filha. Tô te atrapalhando, né? Desculpe, é rapidinho…
O vento soprava de frente levantando a proa e afrontando nosso corajoso Lépido que corcoveava avançando, com a ajuda do motor, de encontro ao sudoeste.
De repente nosso Seagull, aquele tal motor que nunca enguiçava, engoliu um saco plástico, engasgou, tossiu e…morreu!
No refexo do olhar do capitão entendi que a manobra teria que ser rápida, alcancei o cabo da vela que descansava na proa, enrolei-o na catraca e fui rodando a manivela até que a vela alcançasse o topo do mastro, o capitão acertou a regulagem dos panos com precisão e o vento assumiu seu posto. Lépido respondeu adernando como um veleiro de raça, sensível e obediente aos comandos.
Nina apareceu da porta da cabine, observou o horizonte e diante da imensa nuvem escura que viu sugeriu que voltássemos para casa.
Eu achei que a sugestão era bastante sensata mas o capitão respondeu com fé:
- Calma aí! De jeito nenhum! Você vai ver a praia que nós vamos curtir amanhã
Observei Nina voltar para o seu aconchego num resmungo desdenhoso
– Até parece…praia amanhã…?
A âncora, os cabos, os coletes salva-vidas estavam sob uma montanha de bagagens… Mas claro que não seriam necessários. Afastei os maus pensamentos,
Mas por causa de outros maus pensamentos lembrei que não havia nenhum lugar abrigado entre o Rio de Janeiro e a Ilha Grande…
O vento aumentava, a chuva engrossava, nada ficava no lugar. Só Nina…quietinha e encolhida na proa. O veleiro encontrava muita dificuldade para prosseguir porque estávamos com uma vela inadequada.
- Marcos, cadê a storm-jib!?
Percebi que ele engoliu em seco.
- Eu não trouxe, achei que não íamos precisar…
E agora? E agora???! Nossa storm-jib, a vela de tempestade, a única vela adequada não estava no barco! Minha confiança no capitão foi por água abaixo, fiquei furiosa com a irresponsabilidade. Temi por nós, principalmente por minha filha. Por outro lado não seria sensato discutirmos naquele momento portanto só me restava colaborar. A inconsequência teria que ser compensada pelo talento e Marcos precisaria de ajuda.
E tudo piorava, o radio ficou sem bateria, o dia escureceu, o vento apertou, a chuva engrossou e o medo ia me intoxicando. O barco chacoalhava, tremia, subia e descia, corcoveava, brigava com as ondas, não queria desistir mas também não avançava dinte do voluntarioso sudoeste.
Ilha Grande estava à vista, tão perto…
- Vamos voltar!! – subitamente veio a decisão do capitão .
- O que??? Mas Ilha Grande está alí!
- Não vamos conseguir, Olívia! São cinco da tarde, já está escurecendo.
Estávamos velejando há dez horas!
Sem hesitar, numa manobra rápida Marcos girou o barco e Lépido atingiu uma velocidade que eu nunca vira antes. O mastro vibrava assustadoramente enquanto eu recolhia vela de proa. Rezei todas as orações conhecidas porque perder o mastro alí seria muito pior do que aterrorizante.
A água invadia a cabine e eu enchia, para depois esvaziar, baldes e mais baldes de mar para aliviar o peso do barco.
A paisagem desapareceu no lusco-fusco da tarde mal-humorada. Nosso caminho logo ficaria na mais completa escuridão e barco não tem farol!
Marcos se sentia heróico, cheio de adrenalina enfrentava a natureza como um Ulisses demente!
Eu estava em pânico, um sono insuportável me invadiu e manter os olhos abertos com as pálpebras tão pesadas se tornara muito difícil, a reação física me assustava porque era desconhecida e eu não sabia como supera-la! Meu coração batia na boca…
E se aquele irresponsável caísse na água? E se o barco afundasse? E se…? E se…? Eu não saberia o que fazer . Precisava muito dele e me esforçava muito para abrir os olhos depois das longas piscadas, só para comprovar se ele ainda estava no leme.
Por devoção a Netuno recorri à garrafa de uísque. Depois de duas ou tres doses uma vaca já mugia dentro de mim. Não… talvez fosse um touro, um miúra negro, preso e furioso, escavando o chão com os cascos, exigindo uma morte sangrenta! Estava dividida entre essa enorme vontade de assassinar o capitão e outra de chorar no ombro dele…
Graças à Iemanjá, a Deus e a todos os santos o capitão continuava dominando a situação. Eu o observava atentamente e, se vislumbrasse o menor sinal de apreensão nele, desabaria. Parecia um filme de terror ao vivo! O oceano estava dentro do barco e o barulho era apavorante.
As únicas luzes na noite eram as dos prédios, postes e faróis dos carros circulando nas ruas da Barra. No elevado do Joá os carros passavam inocentes. As enormes ondas se esticavam tentando alcança-los, rugiam furiosas mostrando os dentes, espumavam de raiva, investindo contra a encosta de pedra.
Passamos no escuro, silenciosos, invisíveis. Nem as ondas, nem meu pai sabiam onde estávamos. Ninguém sabia. Só Netuno.
Sozinha, sentada no fundo do barco eu observava a cena surrealista da água correndo de proa à pôpa como num rio dentro da cabine. Minhas pernas obstruíam o curso d’água provocando ondas que, ao encontrar o dique humano, quebravam me encharcando até a alma. Nada continuava seco ou imóvel. Só Nina, sobre o beliche da proa.
Marcos recebia suas doses de uísque sorrindo torto para me tranquilizar e eu continha minha fúria assassina enchendo baldinhos com água do mar.
Rezei até para Sao Conrado que surgiu diante dos meus olhos, depois Niemeyer, e olha alí o Vidigal…LeblonIpanemaArpoadorCopacabanaLemePraiavermelha…olha! O Pão de Açucar! Olha o Pão de Açúcar!!!!
- Nina, Nina, o Pão de Açúcar!!! Estamos chegando!
Nina veio e me apertou num abraço e eu percebi o quanto ela estivera também assustada. Ignoramos o capitão e comemoramos en petit comité.
A majestosa pedreira não se abalava com as enlouquecidas ondas que a mordiam. Enquanto passávamos ela nos observava enigmática, como fazem as esfinges idôneas, ao mesmo tempo que se divertia com a nossa fragilidade.
Lépido parecia uma caixinha de fósforos flutuando frenéticamente sobre o caos das ondas embaralhadas e ventos desnorteados na entrada da baía.
Finalmente, às dez da noite, entramos nas águas abrigadas. A aventura durara quinze longas horas! Estávamos exaustos, molhados, famintos e sem velas adequadas. E sem motor…Era óbvio que o barquinho, que brigara tanto para chegar, não conseguiria alcançar o distante objetivo no clube em Niterói. E também não era uma opção jogar a âncora em qualquer lugar porque havia o risco de atropelamento por navio cego… Por estarmos indecisos deixamos o barco correr…
O veleirinho, cansado e corajoso, aproveitou a inércia e nos levou até bem perto de um enorme e escuro iate que parecia adormecido, incógnito e silencioso no seu canto. Que iate seria aquele?
Alcancei a única lanterna que ainda funcionava e procurei seu nome no casco…o facho de luz revelou que era o Lady Laura!
Aquele seria um colinho e tanto! Será que o Roberto aprovaria?
Como atrevidos vira-latas que encontram uma portaria segura para dormir resolvemos nos aconchegar alí mesmo. A sensação de alívio provocou gargalhadas e fomos dormir molhados e famintos porque nada mais parecia importar, afinal estávamos no colo da mãe do Roberto, o colo mais famoso do Brasil!

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