segunda-feira, 12 de novembro de 2007

O LIVRO – Heloisa Ausier

Hoje me pergunto por que só naquele dia percebi a beleza de Marina. Apesar de cumprimentá-la todos os dias ao passar por seu sebo de livros, o “Don Quixote”, não imaginava que um dia ao entrar ali, minha vida seria definitivamente mudada.
Como sempre costumava fazer ao voltar da faculdade, entrei no sebo para procurar algo diferente para ler. Tinha lido há uns dias, as primeiras páginas de “O Pêndulo de Foucault” na internet, e excelentes críticas ao seu autor, Umberto Eco. Olhei em todas as prateleiras e não o achei, mas dei de cara com um outro livro dele que me interessou. Comecei a folheá-lo e na primeira página percebi uma dedicatória que me chamou a atenção. “Foi então que vi o Pêndulo... Lembra? Paris, 1991! Que continuemos juntas a desvendar cada segredo do amor e dos livros. E que Paris esteja sempre em nossas vidas!” Assinado “Anita”.
“Foi então que vi o Pêndulo.”, era a primeira frase do livro que eu estava procurando. Obviamente quem escreveu a dedicatória, datada de quinze anos antes, o tinha lido. Totalmente decidido a comprá-lo, tirei minhas economias do bolso da calça. Marina que estava tomando distraidamente uma caneca de café fumegante tomou um susto ao se deparar com aquela capa. Procurou imediatamente a primeira página e ao achar o que procurava, disse-me que aquele livro não estava à venda. Desculpou-se me explicando que ele estava na prateleira por engano. Senti que Marina estava extremamente constrangida com a situação, mas irredutível, quase histérica com a possibilidade de perdê-lo.
— É seu esse livro? — perguntei.
— Sim, não sei como ele foi parar na estante. — Respondeu ela.
— Essa dedicatória foi escrita para você? — Insisti.
— Foi. — Respondeu Marina mexendo sem jeito em seus cabelos encaracolados.
O telefone tocou, e ela atendeu. Fui até a outra sala procurar outro livro e voltei a tempo de ouvir o final do telefonema.
— Sozinha. O sebo está indo bem e saio com os amigos. Para mim, basta por enquanto. Não sei se quero me envolver com alguém tão cedo. — falou Marina.
Não ouvi o que a outra pessoa retrucou, mas Marina continuou.
— Agora é que você resolveu se preocupar comigo? Quando foi embora por causa daquela mulher não pensou nisso. Eu estou bem. Estou até pensando em sair... — Marina parou ao me ver chegar.
Fiquei sem graça e fingi estar olhando outra estante e ela continuou.
— ... com uma pessoa que está sempre aqui no sebo. Você sabe que tenho um fraco pelos leitores compulsivos — disse Marina rindo.
A outra retrucou alguma coisa, e Marina respondeu baixo colocando a mão no bocal do telefone.
— Não me venha com essa história de “você é que sabe”! Claro que só eu é que sei. To legal, Anita! De verdade! E se o carinha continuar a aparecer sempre no sebo com cara de garoto abandonado, eu vou fundo mesmo.
Logo após a outra falar alguma coisa, Marina se despediu sem perceber que eu tinha ouvido o resto da conversa. “Será que eu era a pessoa com quem ela pretendia sair?” conjecturei.
Desembolsei uma merreca para comprar um livro de bolso, me despedi dela e me mandei pensando que provavelmente aquela ao telefone era a Anita.
Minha necessidade em conhecer a história daquelas mulheres se tornou iminente. Estava profundamente confuso e atraído por tudo aquilo. Marina era a ligação com Anita e mais ainda, era o próprio alvo de sua dedicatória. Procurei-a no dia seguinte no sebo. Queria saber sobre a dedicatória.
— Por que você acha que eu tenho que te contar a história da dedicatória? — perguntou Marina?
— Porque eu fui compreensivo quando você não quis me vender o livro, então mereço ter minha curiosidade saciada. — disse eu sem muita convicção, mas jogando todo o meu charme.
— Vou te contar, não porque ache que você merece e sim porque não agüento mais ficar fingindo que a minha vida antes de eu vir para essa cidade não existia. — disse ela. — e também porque você é um cara muito gracinha.
— Estou ouvindo — disse, olhando dentro de seus olhos.
— Ta legal! Há vinte e três anos quando fazia universidade me apaixonei pela professora de francês. A paixão foi recíproca e logo estávamos morando juntas, num apartamento pequeno e cheio de livros. — Marina tirou da testa um cacho dos cabelos e continuou. — Moramos durante um ano em Paris, em 1991, quando Anita fez um curso de pós-graduação. Foi lá que adquirimos o hábito de ler alguns livros ao mesmo tempo e discuti-los. Para isso muitas vezes compramos dois exemplares do mesmo título. “O Pêndulo de Foucault” foi o primeiro livro que lemos juntas em Paris.
— Por isso então a dedicatória com a primeira frase? — perguntei.
— Sim, esse livro nos marcou profundamente. — respondeu Marina.
Estava na hora dela fechar a livraria, combinamos sair mais tarde.
O céu estava estrelado e a lua estava quase cheia. Andamos até achar um barzinho num porão com pouca luz e nenhuma badalação. Eu estava ansioso por conhecer melhor aquela mulher e sua vida, e ela parecia aliviada em poder contar seu drama a alguém realmente interessado em ouvir. A história de amor entre Marina e Anita não começou nem acabou de maneira diferente da história da maioria dos casais. Houve cumplicidade, companheirismo e traição!
Depois de uma pizza e algumas taças de vinho, fomos para casa conversando. Quanto mais ela falava de sua amada, mais instigado eu ficava. Já não sabia qual das duas mulheres me atraía mais. O fato é que eu estava totalmente embriagado por toda aquela história de amor. Já conseguia imaginar a mulher que eu não conhecia. Sentia seu perfume, ouvia sua voz, entendia seus pensamentos. Paramos na frente da casa de Marina, e num impulso dei-lhe um beijo. Nossas bocas se acharam com a facilidade de velhos amantes, e as línguas dançaram num ritmo frenético e apaixonado. Em poucos minutos estávamos na cama, e eu estava descobrindo uma mulher meiga e sensual. Depois de esgotarmos nossa sede de sexo, deitamos de costas e ficamos assim um tempo. Olhei para a estante e lá estava um porta retrato com uma foto. “Provavelmente era Anita” pensei. O outro lado do triângulo. Lembrei de uma música que dizia: “Why can't we go on as three?”.
Não imaginava como seria minha vida dali em diante, mas estava resolvido a aproveitar cada momento. Enquanto Marina fazia café na cozinha, por força do hábito, dei uma olhada nos livros. Reconheci a lombada de um, me levantei e o puxei. Não consegui abrir nem ler a primeira frase. Marina estava me segurando por trás. Senti sua boca nas minhas costas e suas mãos escorregando pela minha cintura. Meu corpo tremeu de desejo. Deixei o livro de lado.

Nenhum comentário: