terça-feira, 13 de novembro de 2007

QUEM SE LEMBRA DO FARINHA? - Guga Casari

As areias do tempo engolem cruéis a pegada de homens comuns. Por que com Otávio seria diferente. As palavras que evitavam sair de sua boca por causa da gagueira eram pronunciadas com alento apenas suficiente para romper a distancia entre ele e o próximo. Andava de lado em ritmo próprio, sempre tropeçando em degraus impostos por sua perna mais curta. E como tinha a pele muito clara, era quase albino e não pôde ir trabalhar na roça. Por isso o pai lhe ensinou alguns rudimentos do oficio de carpinteiro vendo nisso uma solução para o menino conseguir oficio. Nas fabricas onde trabalhou não tinha antipatias, nem grandes amizades, e como tinha começado a trabalhar muito jovem aposentou-se cedo. O único reconhecimento duradouro que recebeu de seus pares foi o apelido de Farinha, por que, coberto de pó de serra, o branco Otávio era uma imagem notável.

Noivou apenas uma vez, o nome da moça era Leopoldina. Para Ele, Leopoldina foi um anjo que o aceitou, mas ela morreu bem antes que pudessem falar de casamento. Tímido, ele nunca mais conseguiu se aproximar de outra, conformando-se com a solidão.

São Francisco era o santo de sua devoção discreta, para o qual sempre orava. Fora o trabalho era seu companheiro de todo momento. Isso sem contar com os que eram seus únicos amigos, André e o Zé Formiga. O rústico e simples André era canteiro, um tipo que já não se encontra mais, Ele dava forma a pedra com ponteiros de ferro. Zé formiga era um negro alto e bem magro sempre muito calado, uma chaminé constantemente fumando. Apontava o jogo do bicho ali na região. Diziam que era “pé frio”, pois ninguém que apostou com ele nunca ganhou muito dinheiro.

Otávio morava num quartinho do sobrado azul na Rua Sete de Abril. Comia sempre na pensão da Dirce, já que a comida lá não era ruim, e na média dessas coisas até que o lugar era limpo, se você relevasse o verniz de frituras sem fim na parede.

Depois de se aposentar Otávio continuou a fazer biscates. A aposentadoria, claro, era pouca e um troco a mais era bem vindo, mas o motivo real era que o trabalho era tudo o que conhecia. Quando trabalhava se sentia bem e em paz. Trabalhava quieto, não gostava nem de rádio ligado. As vezes parecia antipático porque se alguém chegasse de repente pra falar algo ele custava a deixar o que estava fazendo. Isso lhe trazia poucos clientes, mas também lhe afastou de muitos azares. Sem o convívio diário com colegas de fábrica, Otávio se voltou ainda mais para dentro, se tornou alheio do mundo e das pessoas em geral.

Faleceu quando estava florida a cerejeira japonesa ao lado de sua pequena oficina. André que achou estranho Otavio não aparecer pro jogo de damas, o encontrou naquele domingo, justo para o descanso. Seria enterrado como indigente não fosse pelas economias deixadas numa latinha de leite em pó, exatamente bastantes para o seu funeral. Os dois amigos cuidaram do enterro simples no caixão de pinho. Não ficaram pendências, suas encomendas estavam todas entregues.

Fora Zé Formiga, a Odélia cozinheira da pensão, André e Marcelo que era seu aprendiz ninguém foi velar Otávio. Os quatro que foram notaram que o falecido tinha a face tranqüila.

No quarto do sobrado não ficou nada que indicasse quem havia morado lá, quase no mesmo dia do enterro a TV sumiu e o dono do quarto mandou jogar fora a geladeira velha, com o fogareiro enferrujado, mais todo o resto que havia. As ferramentas ficaram com Marcelo. O dono da garagem onde era a oficina ficou com a serra elétrica pelo pagamento de alugueis.

Otávio não deixou nada pra traz. Não se sabia se tinha família, primos, irmãos. Dos que poderiam se lembrar dele André se foi primeiro, falecendo logo depois do amigo. Zé Formiga foi apontar o bicho noutra região, onde não sabiam do seu pé frio. E quem fosse à pensão da Dirce meses depois já não a encontraria mais lá, Odélia que segurava o tranco da birosca pediu as contas sem explicação, e mudou de cidade.

Sem deixar pista, Otavio e sua vida poderiam bem ter evaporado, ou nem existido.

Só que não foi assim que aconteceu.

Os monges do mosteiro que não conheceram Otávio, o têm no coração com carinho. Vêem no altar nascido da prancha grossa de madeira, antes usada pra subir um pesado trator de esteira num caminhão, a dedicação absoluta do artesão. Este altar foi uma de suas últimas obras, e conta um milhão de histórias, parecendo amparar as dores, sofrimento e o próprio peso do mundo, dum modo tão leve, gracioso e discreto que assombra.

A velha senhora não sabe quem produziu o pequeno castiçal pelo qual tem grande apreço. Achou-o numa loja. Especial na aparência por um pequeno nó na madeira, e pela forma que suas fibras se trançam no seu torneado. Para ela é um companheiro corajoso de orações nas suas noites insones, que a diverte pelo absurdo. Um castiçal de madeira que pode se inflamar, consumido pela luz que serve.

O Professor não sabe quem fez a caixinha lisa e encaixada que sempre se quer tocar. Foi um presente de aniversário da esposa. Eles a usam para guardar e proteger bons sentimentos, escritos em papelotes coloridos.

Odélia, a cozinheira da pensão, cozinhou para Otávio tantas vezes sem nunca trocarem uma palavra, até aquela ultima sexta feira. Naquele dia Odélia tinha errado no sal da couve e no tempero do feijão, coisa que nunca acontecia, e Otávio a viu chorando, cansada e sem esperança. Descobriu que o filho tinha roubado suas economias, guardadas para tratar da vista da sobrinha. Num gesto Otávio lhe fez uma banqueta e a presenteou.

– Pro seu descanso Dona Odélia.

Foi só o que disse, talvez suas últimas palavras, que lhe saíram claras e sem titubeios.

Odélia sentou-se e descansou as pernas cheias de varizes, grata lhe deu um beijo no rosto e fritou pasteis inesquecíveis. Nessa banqueta Odélia descansou muito, e se refez. Lembrou do amor ao filho, planejando a aproximação. Naquele templo minúsculo Odélia abraçou o rapaz, choraram juntos, e Ele jurou se emendar. Emendando-se achou um bom caminho, nesse bom caminho casou e teve um filho que amava. Um simples gesto compassivo de amor, gravado na eternidade do Coração.

Por Guga Casari

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