sábado, 9 de fevereiro de 2008

A Cadeira Extra - Ana Lidia Pimentel

Nasci igualzinha às minhas sete irmãs. Num total de oito, éramos muito orgulhosas de nossa linhagem, afinal de contas, nascemos por encomenda. Made in Brazil sim, mas no século XIX!
Uma coisa que nunca entendi em criança era o porquê de sermos oito, se à volta daquela linda mesa de jantar de mesma origem e idade, só ficavam seis de nós. Duas de nós sempre ficavam nos cantos da sala de jantar, geralmente ladeando um belíssimo aparador. Depois descobri que eu era uma cadeira extra. Se aparecesse visita, lá estava eu, pronta para acomodá-la. Ainda posso sentir o cheirinho daquelas comidas deliciosas. Poucas vezes provei delas e assim mesmo através de pedacinhos que caíam acidentalmente sobre mim devido à imperícia das crianças no manuseio dos talheres. O Pai sentava-se à cabeceira, duas meninas de um lado e dois meninos de outro. Na outra cabeceira sentava-se minha dona, mãe e esposa amantíssima. Como era gentil aquela senhora, uma dona-de-casa para ninguém botar defeito. Nunca nos arrastou ao sentar-se à mesa. Já com as crianças, era um terror. Acho mesmo que ficamos mais baixinhas de tanto que nos arrastavam fazendo uma verdadeira raspagem em nossos pés. As nossas pernas ficavam bambas e nossa dona por incontáveis vezes teve que chamar o Sr. Antônio, o marceneiro, para consertar-nos. O Sr. Antônio era um homem grande de longos bigodes e um forte sotaque. Era português de origem, mas já estava no Brasil há muitos anos, muito embora o sotaque permanecesse intocado. Apesar de ser corpulento, o Sr. Antônio era gentil. Tratava-nos como se fossemos rainhas. Enquanto trabalhava, elogiava a madeira de que éramos feitas e o capricho de quem nos criou. Costumava dizer: - Nem parece que foram fabricadas cá no Brasil. Podem ter sido feitas aqui, mas com certeza, por algum patrício meu -. Não fosse pelo zelo da arrumadeira, eu jamais teria sabido o que era ser uma cadeira da mesa de jantar. Teria sido sempre a cadeira extra, a cadeira do canto, a cadeira do aparador.
D. Filomena, também portuguesa, mas quase sem sotaque, era muito caprichosa em seus afazeres. Ela fazia o rodízio das cadeiras para que nenhuma ficasse mais desgastada que as outras. A pobre criatura sofria de terríveis dores nas pernas devido às varizes. Depois que ela limpava e arrumava a sala de jantar, ela sempre se sentava em mim ou na minha irmã do outro lado do aparador e descansava as pernas um pouquinho. Também era ela quem chamava minha dona para mostrar a necessidade deste ou daquele reparo. Ah! Que tempo bom era aquele... A família toda reunida em torno da mesa de jantar (que também era de almoço, lanche, ceia...).
Lembro-me bem do primeiro grande golpe de minha vida. Foi bem no finalzinho do século XIX. Minhas irmãs e eu ainda éramos jovens. Seria uma manhã como outra qualquer, não fosse o entra e sai de gente que nós nunca tínhamos visto antes. As crianças fizeram o desjejum na cozinha e logo foram mandadas para a Fazenda da família acompanhadas pelas amas e por dois dos mais antigos e fiéis empregados da família. Mas... O que estava acontecendo? Ninguém vinha à sala de jantar. Todos sussurravam. Eu não conseguia ver nem ouvir nada, mas sabia, ou melhor, sentia que algo estava acontecendo. Finalmente D. Filomena, que tinha o hábito de falar consigo mesma, entrou na nossa sala para a limpeza e arrumação habitual. Ela não só resmungava, mas também parecia estar chorando - Valha-me minha N. S. das Graças! Se o patrão não agüentar... O que vai ser desta família? Ó raios! Mas como é que ele foi pegar esta tal de gripe espanhola?
Duas semanas se passaram e o nosso dono não melhorava. Os médicos já não tinham esperanças. Muito enfraquecido pela doença, nosso dono não resistiu e morreu.
Nossa dona estava triste como jamais havíamos visto. Mandou buscar as crianças na fazenda e logo que eles chegaram receberam a triste notícia. Choraram. Choraram muito. Choraram até que o sono viesse para aliviar aquela dor imensa em seus coraçõezinhos. Nós, firmes por natureza, também entristecemos.
Mais uma de nós deixaria de ser ocupada durante as refeições.
Estranhamos muito o fato de que a primeira vez que fomos usadas depois do falecimento do nosso dono não foi numa refeição. Eles chamaram aquela reunião de Leitura do Testamento. Foi depois daquele dia que nossas vidas mudaram completamente. Pelo que pude entender a família, que tinha seus proventos oriundos da plantação de café e de algum gado leiteiro na fazenda, não ficou em boa situação financeira. Sem liquidez, diziam. Nossa dona resolveu vender a casa da cidade e ir morar na fazenda, para poder administrar mais de perto os cafezais e o gado.
E assim foi. A casa foi vendida. Porteira fechada, diziam. E, como nós estávamos dentro da porteira, nós ficamos.
A nova família que ali se instalou era formada por um jovem casal e dois filhos gêmeos de aproximadamente quatro anos de idade. Os nossos novos donos pareciam ser ricos mas com certeza não tinham a mesma educação que os antigos. As crianças não tinham limites e mexiam em tudo. D. Filomena, que também ficou dentro da porteira, se desesperava. Nós oito, agora mais experientes e sofridas, lamentávamos a nossa sorte. Os gêmeos endiabrados gostavam de sentar nas cadeiras que ladeavam o aparador. Pisavam na palhinha do assento, pulavam, sacudiam o encosto e até faziam xixi sobre nós duas.
D. Filomena vinha, limpava e resmungava: - Esses “putos” vão dar cabo da mobília-! O Sr. Antônio foi chamado várias vezes, mas os guris, cada vez mais encapetados, não tinham sossego.
A mãe não gostava de amas e nem de governantas dizendo que ela mesma queria se encarregar da educação dos filhos. O que ela não sabia é que não se pode dar o que não se tem. Numa das vezes em que o Sr. Antônio foi chamado, ele falou à nossa nova dona que era uma pena que cadeiras e mesa de tão boa qualidade estivessem tendo aquele tratamento. Reconhecendo que os filhos eram bastante “agitados”, nossa dona resolveu comprar um cachorrinho para os garotos. -Quem sabe assim eles se dedicam ao cachorro e esquecem a mobília-?
Lembro-me de ter pensado que eles não só não esqueceriam a mobília como também iriam fazer do cachorro ou um mártir, ou um louco. A segunda opção prevaleceu. O cachorro era quase tão doido quanto os garotos. Não demorou muito para o cão começar a urinar em nossas pernas. O tempo foi passando. D. Filomena pediu as contas e nós estávamos arriscadas a apodrecer a poder de mijo. Mas o pior ainda estava por vir. O cachorrinho endiabrado começou a roer as minhas pernas .
Por que só as minhas pernas? Não sei e nem nunca fiquei sabendo. Minhas pernas ficaram tão roídas e tão feias que minha nova dona me retirou da sala de jantar. Aliás ela retirou minha irmã que ficava do outro lado do aparador também. Fomos morar num quartinho de guardados. O quartinho era uma bagunça, mas pelo menos estávamos livres dos garotos e do cachorro.
Meu Deus! – eu dizia à minha irmã - Que diferença da nossa antiga dona!
Acho que ficamos ali no quartinho por alguns anos.
Um dia, ouvimos a voz do Sr. Antônio. Sim, sim! Era ele!
Abriu a porta do quartinho em busca de um pedaço de madeira com o qual pudesse consertar algo que os gêmeos, mais velhos, mas não menos endiabrados, haviam destruído.
Ao nos ver ali dentro e naquele estado, o Sr. Antônio ficou desconsertado.
- Mas o que foi que fizeram a estas cadeiras meu Deus? Isto é um pecado -!
Ele aproximou-se mais e avaliou os estragos. -Isto é um pecado! Vou ver o que se pode fazer -. Pegou o pedaço de madeira que precisava e saiu. No fim do dia, o Sr. Antônio voltou ao quartinho . Pegou – nos em seus braços ainda muito fortes e nos levou para fora.
-Ó minha senhora, a senhora não quer me vender estas duas cadeiras?
– Vender? – perguntou ela.
-Pois sim , vender!
_ Bem... mas... eu não sei quanto elas valem.
- Valem muito minha senhora. Mas, no estado em que estão, há que se gastar bastante dinheiro para recompô-las.
-O senhor quer trocá-las pelo serviço que acabou de executar?
-Negócio fechado.
E lá fomos nós para a oficina do Sr. Antônio. Lá, ele cuidou muito bem de nós. Trocou minha perna roída por uma nova da mesma qualidade de madeira, que ele mesmo confeccionou. Chamou o homem que colocava palhinha e trocou as nossas palhinhas dos acentos e dos encostos. Deu lustro na nossa madeira e... Voilà! Estávamos novinhas outra vez. Quanta felicidade. Que homem generoso era o Sr. Antônio. Ficamos algum tempo morando na oficina até que um dia o nosso benfeitor levou lá um homem muito bem educado e culto que, só de nos ver, disse o ano de nosso nascimento, estilo, tipo de madeira, etc. Olhou detidamente para mim e para minha irmã. Acho até que ficamos um pouco encabuladas. Depois, disse assim- Fico com elas Antônio. Elas valem o preço que você me pede e eu pagarei feliz. - Apertaram as mãos e lá fomos nós duas morar na casa do tal senhor. Chegando lá, descobrimos que não era a casa dele, mas uma loja muito bonita cheia de objetos e móveis que pareciam ter e tinham estirpe. Era um antiquário. Nessa loja só entrava gente muito fina e de bom gosto. Quando nos olhavam sempre elogiavam. Aquilo nos fazia bem depois de tantas desventuras.
Era bom estar ali, mas nós sabíamos que aquele não era o nosso lar definitivo, pois víamos que os objetos e móveis eram vendidos, trocados ou comprados, dia a dia. Alguns anos haviam se passado, quando um dia, uma jovem senhora muito distinta entrou na loja e dirigiu-se ao patrão perguntando se ele não teria ali cadeiras, assim, assado... Ele imediatamente apontou para nós. Aproximando-se, a tal senhora exclamou: -Exatamente o que eu estava procurando! Vou levar-! Sem fazer questão de preço, a distinta jovem senhora nos colocou em um carro e nos levou para nossa nova casa. Era uma casa grande e bem cuidada que lembrava a nossa primeira casa. Não havia crianças. Só ela e a mãe. A senhora mãe me era tão familiar... Um dia, minha irmã e eu a ouvimos contar à filha, como a gripe espanhola havia matado seu pai e como eles foram viver na fazenda com a mãe... Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Mas, era fato. Aquela velha senhora era uma das meninas da nossa primeira família. Quanto tempo havia passado? Quanto mais ela falava de sua infância, mais certeza eu tinha. Era incrível! Muito tempo havia passado.
Como éramos apenas nós duas, não fomos colocadas na sala de refeições e sim na sala de estar fazendo conjunto com um sofá que sem dúvida era nosso parente. Mesma madeira, mesmo estilo... Sim, era nosso primo. Tanto ele quanto nós gostamos muito desse nosso encontro. Estamos até hoje nessa mesma família. Hoje, uma outra geração.
Mas a mesma família. Moramos, agora, na casa de uma das bisnetas daquela velha senhora cuja filha nos resgatou.
E assim, acaba esta estória que comprova que o mundo é pequeno, redondo e dá voltas. O que vai acontecer daqui pra frente, eu conto numa próxima vez.

2 comentários:

Unknown disse...

Amei !
Uma delícia de conto, do início ao desfecho, e já reli três vezes, desde a primeira (acho que vou acabar gastando os pés da cadeira extra,rs...) .

Ana Lidia Pimentel disse...

Obrigada, Cats-home!
Acho que vc já leu esse meu conto mais do que eu ! rsrs
Obrigadíssima ! Fiquei muito feliz com seu comentário !
Beijos,
Ana Lidia.