sábado, 9 de fevereiro de 2008

COLAGEM DE 1958 - Wilma Casari Kós


Rio, 26 de janeiro de 1958 . No Leme

Quando parei de chorar peguei um espelho e esgotei todas as caretas que sabia fazer.
Nenhuma conseguiu esconder esta minha aparência miserável.
Sento-me á mesa para tomar café. Café ou suco de laranja? Bolacha ou torrada? Manteiga ou requeijão? Tanto faz.
Carrego uma podridão interna desde que nasci. E se ela agora resolveu aparecer na minha cara, não posso dizer que a causa foi por alguma coisa que devo ter comido.
Será inútil escolher criteriosamente o que comer neste momento ou o que comerei mais tarde. Portanto, tanto faz.
Sei muito bem que o código da minha vida, o código da vida de toda a humanidade já foi traçado por Deus e seus delírios, desde sempre. Antes mesmo da era da turbulência jurássica.
Ontem, depois de estudar toda a bateria de exames, radiografias e etc, meu médico foi frio e objetivo ao dar o diagnóstico: - Para o seu caso a cirurgia é aconselhável porque, como o problema foi detectado cedo, a reparação é quase certa.
Quase? Essa palavra me deixou fora de órbita por alguns segundos, mas felizmente meu guardião de memórias veio em meu socorro liberando antigas cenas da infância:
Infância onde Teresa e eu, a menina que roubava livros da livraria do seu Genaro éramos unha e carne.
Seu Genaro era o dono da papelaria-livraria-armarinho da nossa cidadezinha. Lá os meninos compravam papel de seda colorido para fabricarem suas pipas. Mas por razões que não lembro mais, o único lugar onde eles conseguiam empina-las era na praça, enfrente á porta da loja. “Na sombra do vento” como eles diziam.
Nas horas de maior empolgação, com todos empenhados nas batalhas aéreas, seu Genaro aparecia de surpresa e cortava os fios das pipas, Muitas se perdiam, outras se arrebentavam no chão, mas o velho ranzinza conseguia confiscar algumas. Levava-as para dentro da loja e nunca devolveu nem uma sequer
Porisso nós duas o apelidamos de “O caçador de pipas”.
Onde está Teresa e sua bússola de ouro para me levar de volta à cidade do sol?
Odeio objetividade porque ela nos afasta da realidade. Nelson Rodrigues compara a objetividade a uma lavadeira que, com as mãos afundadas no tanque, ouve uma gritaria ao longe. Larga o sabão e vai correndo até o portão para saber o que está acontecendo. O que vê é apenas um homem baixinho espiando por um binóculo. Entediada volta para o seu objetivo que é o de lavar roupa suja. Por estar concentrada na espuma de sabão, ela deixou de assistir ao momento histórico que foi o de Napoleão perdendo a batalha de Waterloo. A santa mulher não vê nem batalha, nem Napoleão. Só vê o que quer ver: sujeira, água e sabão.
Se Deus tivesse me designado para nascer no signo de Capricórnio, eu hoje estaria destinada a ter muita animação na minha vida afetiva. Teria um aumento na auto-estima. Minhas horas seriam preenchidas com romances, festas e lazer. Encontraria pessoas interessantes, agradáveis e dispostas a bater um bom papo comigo.
O meu médico não é nem interessante, nem agradável. Não está disposto a bater um bom papo e muito menos me ver como pessoa. Para ele sou apenas mais um Napoleãosinho doente lutando a sua batalhazinha. Concentrado atrás de uma luneta âmbar ele tenta penetrar para além das fronteiras do universo do meu corpo. Só pensando no dia em que, com sua faca sutil, arrancará dali mais um tesouro para a sua coleção de relíquias da morte.
Leio na seção de Horóscopos do jornal que o aconselhamento para meu signo é:
Saturno aparece como um pensamento cobrador que bate à sua porta para acertar as contas pelos seus atos passados. Não discuta, pague logo.
Acontece que o meu signo é Sagitário, infelizmente


Rio, 10 de fevereiro de 1958. Na casa de Saúde São José.

Mãos que se aproximam, apertam as minhas e se perdem. Gente de névoa.
Abro os olhos ou ... serei eu me abrindo todinha entre as pálpebras dos lençóis?
Vejo que hoje é noite de lua cheia. Ela entra pela janela derramando um leite branco- azulado sobre a minha cama.
Lembro da cirurgia.
Passo a mão de leve pela cicatriz e desejo angustiadamente um novo corpo.
O médico entra . Seu jaleco não tem mais no peito a grande flor vermelha estampada que eu vi, vagamente, no centro cirúrgico.
Tento afastar seu estetoscópio do meu peito, com medo que ele possa escutar meus pensamentos.
A enfermeira está sendo repreendida pelo Dr. Importante.
Sinto suas mãos tremendo como um terremoto enquanto ela mede meu pulso...
...já consigo levantar da cama e fico horas encostada na janela do quarto contemplando o ritmo da vida lá embaixo.
Meus passos trôpegos me levam até a porta e, surpreendida vejo que consigo abri-la sem esforço.
Mas... meus olhos desanimados medem o longo corredor.

Dia 15 de fevereiro de 1958, Ainda na casa de Saúde São José.

Fico cada dia mais cansada, mas não tenho sono. Quando a auxiliar entra com o almoço abro a boca num falso bocejo, num sono fingido.
São artimanhas tentando encobrir maus presságios.
Nesta manhã sinto no ar um clima diferente. Dr Importante deixou-se ficar mais tempo ao meu lado e senti pelo seu modo de olhar que ele finalmente viu em mim uma pessoa! Será que o tumor extirpado atrapalhava tanto assim sua percepção?
Engraçado... o dia está escurecendo tão depressa...
Na parede enfrente à minha cama tem um quadro representando uma montanha, e de repente sinto a montanha pesando no meu peito.
Minha cabeça parece um barranco em que a terra vai desmoronando devagarinho.
Apoiados em suas bengalas, papai e mamãe surgem através de um quarto sem luz.
Rindo tento pegar os dois no colo e começo a chorar comovida com tanta leveza.
À minha volta muita gente, todos no mesmo rumo.
A enfermeira aflita apertando meu pulso e murmurando baixinho: Não vá ainda, não vá embora...
. Meu coração sai pela boca e fica ao lado da cama só observando...Porque tanta correria?
Dr. Importante, usando novamente o jaleco com a flor vermelha tenta levantar a minha cabeça.
Coitado... seu dia hoje foi cheio de frustrações.
Antes de chegar ao hospital pela manhã assistiu aquele acidente que deixou um menino morto. Tinha sido atropelado minutos antes e estava estendido no asfalto ao lado de uma bicicleta nova. Tão franzino, tão desamparado... Ainda latejante o sangue à sua volta parecia abraça-lo com braços de mãe...
E agora posso sentir o quanto está preocupado comigo. Sei que tem dúvidas sobre se deveria ter feito a cirurgia ou não. Sabia que meu caso era terminal e está pensando que talvez pudesse ter me poupado o sofrimento extra.
Se a mãe daquele menino pudesse prever o futuro não teria comprado a bicicleta almejada por ele e nem permitiria que saísse de casa hoje com ela.
Um médico pode ter todas as armas, mas nunca conseguirá prever quem sairá vitorioso da batalha entre Vida e Morte.
Preciso lhe dizer que...quero avisar todo mundo que uma enorme ....uma onda maravilhosa está chegando... quero dizer que não se preocupem...que o mergulho será...
Abro muito os olhos num esforço para deixar-lhe a impossível última confidência.
Nada mais importa. O mergulho será inevitável.
Atravesso o quarto escuro e a onda me leva ao encontro da luz.


O médico pousa a cabeça da moça no travesseiro e fecha seus olhos, delicadamente, com numa carícia.
Levanta-se, abre a porta olhando o longo corredor e retorna, desanimado, com passos trôpegos até a janela do quarto. Apoiado no parapeito fica por longo tempo contemplando a vida lá fora.
Enquanto isso alguém que está na sala de espera lendo o jornal do dia, pega uma caneta e sublinha frases na sessão de horóscopos:
Talvez seu dia hoje não seja exatamente como os habituais.
Você entrará em sintonia com emoções que habitam regiões misteriosas e ocultas do seu psiquismo. Isso vai aborrecê-lo porque você detesta a impressão de falta de controle e entendimento racional. Mas não tenha receio. O mergulho nessa onda de sentimentos inexplicáveis vai lhe trazer uma grande revelação. Quando perder uma batalha lembre-se de que não perdeu a guerra

Da janela do quarto da moça morta o Dr. Antonio percebe o magnífico ipê no jardim com os galhos carregados de flores.Muitas delas já caíram no chão tranformadas num lindo tapete amarelo.
Ele não lembra que pertence ao signo de Touro mas, nesse momento aceita que o inexorável, contínuo e mutante movimento da natureza independe da vontade humana.
Das lindas flores do ipê algumas permanecerão nos galhos por mais um dia.
Outras não.

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