sábado, 9 de fevereiro de 2008

Opereta litorânea - Eugênia Kós

Tudo aconteceu em Mucuripe, terra de jangadas.
Não encontrei mais o Zé, mas lembro que ele sempre preferiu as canoas.
Zé era um sujeito solitário, feliz da vida e do seu oficio. Seu melhor amigo era um vira-latas magricelo chamado “Palito”, ambos viviam numa casa avarandada na boca de um rio que terminava na praia.
Sou um chapéu cheio de memórias e nasci da palha verde trançada pelas mãos habilidosas desse homem, o famoso “Zé dos Chapéus”.
Todos os dias ele e Palito tomavam a “Escurinha” e subiam o rio para colher a palha. A dupla começava a trabalhar tão cedo que nem dava tempo de peixe acordar. Zé remava a canoa rio acima e Palito fazia seu papel de proeiro latindo bons-dias aos frangos d’água madrugadores.
A palha era perfumada de maresia e orvalho e a canoa chegava carregada aos varais toscos montados na praia. Daí Zé espalhava as folhas, sem quebrar nenhuma, para secar ao vento sob a sombra dos coqueiros.
Palito corria pela areia entusiasmado com os siris, enquanto Zé jogava os robalos distraídos de volta ao mar. Ele só fazia exceção aqueles do tamanho da sua fome, esses iam para a frigideira. Já Palito, preferia os siris.
Mas voltando aos chapéus... A palha rústica ficava macia e obediente aos tratos do Zé e suas mãos trabalhavam tão depressa que quem tentasse copiar não conseguiria! Ele fazia chapéu de todo gosto e ninguém sabia de onde ele tirava as modas, as invenções saíam de sua cabeça.
Alguns ficavam feios porque, afinal, ninguém é perfeito. Esses viravam, invariavelmente, brinquedos do Palito, que se divertia correndo com eles pela praia, rasgando e roendo até que não sobrasse nada que manchasse a fama do Zé Chapeleiro.
E havia o xodó do Zé, o mais bonito de todos, sua obra-prima. Era o “Domingueiro”. Tinha até lugar especial dentro do armário! Era feito de palha muito fina e maleável, cor de charuto. Tinha uma fita marrom contornando sua copa amassada e suas abas eram perfeitamente quebradas. Aquele era um chapéu de categoria!
Eu também sou um chapéu muito bonito e especial. Zé não se apressou em mim. Minha copa saiu tão trabalhada como renda de bilro e tenho abas muito grandes e onduladas.
Tudo por causa do coração de Zé.
Num dia ensolarado, na saída da missa, Anália, a moça mais linda da cidade suspirou um “ai… preciso tanto de um chapéu…” tão próximo do seu ouvido e com tamanha irresponsabilidade que descompassou o bom coração do chapeleiro e o fez sentir uma necessidade urgente de fazer chapéu lindo, só para ela.
Sem coragem de perguntar o nome da bela decidiu que ela seria “Marisol”!
Por isso Zé escolheu e caprichou nos tratos da minha palha ruiva. Deixou-a tão fina e macia quanto imaginou que os cabelos dela deveriam ser.
Depois passou dias em silencio, matutando, impaciente. Caminhava para lá e para cá moendo o chão de conchas do galpão que também era a sua casa. Café quente e coração batendo, insone. Ele observava aquele amarrado de palha cheirosa que o aguardava silenciosa e passiva, repousada sobre sua mesa. De repente iluminou-se e começou a trançar a palha freneticamente.
Palito ao lado do fogãozinho a lenha observava tudo quieto, orelhinhas em pé, mas sem ousar fazer um movimento.
As mãos mágicas do Zé obedeceram cuidadosamente à suas invenções.
Finalmente fiquei pronto! Com um longo suspiro Zé me pousou sobre a mesa da sala e foi descansar.
No dia seguinte arrebanhou um bocado de papel cinza de padaria, formou um bolo e preencheu o vazio da minha copa.
-“Para te proteger” - ele falou para mim, baixinho, com muita intimidade.
Ficou, por alguns minutos, me olhando em silencio como numa despedida, me abraçou de encontro ao seu peito suspirando e me acariciou demoradamente. De repente me afastou e deu tapinhas na minha copa como se eu estivesse empoeirado.
Com as mãos alisou as folhas de papel restantes, me embrulhou com cuidados de balconista, como se eu fosse presente de loja, e finalmente me ajeitou dentro de uma sacola de supermercado.
Fiquei ali, esperando sobre a mesa até o domingo.
No dia da missa Zé abriu o armário e tirou de lá o chapéu Domingueiro. Depois “vestiu uma calça nova de riscado, paletó de linho branco, que até o mês passado lá no campo ainda era flor...” bem devagar Intrigadíssimo, Palito observava tudo de perto, abanando o rabinho magro, intuindo que aquele era um dia muito importante.
Zé se olhou no espelho, barba feita e cabelos penteados, ajeitou o Domingueiro na cabeça puxando a aba sobre os olhos e foi para a cidade esperar por ela. Na praça escolheu um banco com vista privilegiada.
Ficou lá.
Sentado no banco.
No banco da praça embaixo do Flamboyant florido.
Aquele bem defronte à porta da Igreja.
Esperou olhando fixamente para a porta.
E ela apareceu! Depois da missa.
O coração do Zé disparou de tal forma que ele ficava só engolindo para que esse não saltasse peito afora.
Maravilhosa, Marisol brotou abençoada, da penumbra da igrejinha, depois da missa, perdoada de qualquer pecado. Com as mãos vinha protegendo os olhos da luz de um sol aberto. Por um instante parou do lado de fora, até se acostumar à luminosidade, e um vento atrevido levantou suas saias revelando as belas pernas morenas.
Ela começou a descer... Devagar... Cada um dos cinco degraus da escada santa... Alternando as pernas... O vento também desarrumava seus cabelos... Ela se aproximava cada vez mais de um Zé apatetado.
Zé imaginou, de longe, cada um dos dedinhos dos pés de Marisol porque não ousava levantar os olhos. Ela estava a menos de três metros dele! Uma carroça vinha passando e ela parou, precisou esperar na calçada para atravessar a rua. A carroça demorou uma eternidade, passou muito devagar. Um burrico branco na frente, algumas moscas em cortejo, um carroceiro, seu chicote inútil e rodas resmungando sobre os paralelepípedos da Rua da Matriz...
Zé devaneava imaginando o delicado par de sandálias de verniz branco, o cor-de-rosa das unhas cintilando… e sentiu um perfume de jasmim…
Num estalo se deu conta de que Marisol já estava do seu lado.
Levantou-se completamente sem discurso, a firme mão direita tirou o “Domingueiro” da cabeça e a outra me ofereceu a ela.
- “Para mim?” perguntou surpresa, pousando a mão esquerda entre os seios.
Zé, mudo só balançou a cabeça afirmativamente.
Numa cena deslumbrante, sem hesitar, a bela sentou-se no banco de pedra derramando, com barulhos de mar, a saia branca de tafetá arrematada por uma renda que, bem que poderia ser, a espuma das ondas. Cruzou as pernas e me desembrulhou espalhando os papeis e os sentimentos do Zé no vento.
Irresponsavelmente maravilhosa.
Ele sorriu.
Ela sorriu.
O vestido, os dentes, os olhos... Tudo nela refletia a luz do domingo. Marisol brilhava...
Me viu e me aconchegou junto ao coração, depois me afastou olhando-me com muita atenção, virou daqui e dali, me afagou, me amassou, me arranhou, cheirou e deu uma mordidinha na minha palha macia, depois olhou para o Zé sobre as minhas abas e sorriu para ele, em aprovação.
Num pulo levantou-se do banco da praça e estendeu-me para que Zé me segurasse enquanto prendia os cabelos num rabo de cavalo. Depois pediu que ele me ajeitasse na sua cabeça e sussurrou.
- “Ah, Zé, que lindo!!! Muito obrigada!”
Esticou-se na ponta dos pés, eu na cabeça, abas seguras nas mãos para que eu não escapasse ao vento e deu um beijo no rosto do Zé embasbacado.
Ele quase desmaiou.
A bela levantou-se e tomou seu rumo devagar.
Seguiu cantando feliz, sobre as longas pernas que o vento insistia em mostrar, com a cabeça ainda mais fresca, distraída, irresponsavelmente transformando toda a existência, levando com ela o bom coração do Zé...
- “Eu vou pra Maracangalha, eu vou… eu vou com chapéu de palha, eu vou…”
Em tempo, Caymmi e Belchior são compositores de “Maracangalha” e “Velas do Mucuripe”, respectivamente, e estavam na praça bebendo uma água de côco. Maravilhados, presenciaram a cena e combinaram de transformar essa história de amor numa opereta, mas ainda não tiveram tempo.
Também discutiram o projeto com o Bruno Barreto, mas quem está mesmo interessado em transformá-la em filme é o Cacá Diegues!

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