sábado, 9 de fevereiro de 2008

CHAPEU - Wilma Casari Kós

Ah!...até que enfim você lembrou! As fotografias estão aí para mostrar o quanto estive presente na vida de vocês. Estava na sua cabeça nessas fotos na neve em Interlaken.
Você está ao lado dele, mas quem está na sua cabeça sou eu!
Meu dono sempre foi um homem comedido em tudo. Não dançava, mas quando era obrigado a isso por circunstâncias sociais agarrava a dama, no caso sempre você, e corria pelo salão parecendo uma britadeira desgarrada.
Sorria mas não dava gargalhadas. E quando não conseguia se conter, segurava tanto o riso que ele saia pelos olhos todo espremido em lágrimas.
Era sempre o último a entrar e o último a sair de qualquer transporte, teatro ou restaurante, mesmo que tivesse lugar marcado ou reserva feita.
Em qualquer refeição passaria fome se você não o servisse.
Ao volante parava em todas as encruzilhadas que não tivessem sinal, dando passagem ao motorista que vinha em sentido contrário. Mesmo se a preferêncial fosse dele.
Apesar de ter um gosto literário e musical diferente do seu, não conseguia escolher nem livros nem cds sem que você o ajudasse.
Além dos filmes de ação, gostava também dos” quentes”, mas quem os escolhia na locadora era sempre você enquanto ele ficava passeando pelas alas dos” aceitáveis”, fingindo nada ver.
Comprar roupas, nem pensar Quando era absolutamente necessário fazê-lo, você fazia piada dizendo que ele deveria ter nascido em outra época e lugar uma vez que a sociedade atual não aceitava nudistas.
Então ele entrava nas lojas de emburrado, aceitava qualquer roupa que o vendedor lhe oferecesse, recusando-se a experimenta-las e quando chegava em casa nada cabia.
O único musical que assistiu sozinho foi o Man of La Mancha e eu já estava na cabeça dele porque nesse mesmo dia esse homem bonitão entrou na loja em que eu estava exposto, não consultou nenhum vendedor, me levou ao caixa resoluto, nem perguntou meu preço, (e olhe que eu era caro) pagou, e desse dia em diante só nos separamos uma vez.
Quando voltamos ao Brasil fiquei esquecido numa prateleira porque, como era um chapéu de lã não seria adequado para a viagem de trailer que a família fez ao norte durante as férias de verão. Mas não me incomodei com essa separação porque antes disso já estivera na sua cabeça em todos os acontecimentos que deixaram marcas tão profundas na vida dele.
Desde que voltamos de N.Y. naquela vez, sempre estivemos unidos para lutar contra os
moinhos de vento. Ele era o D. Quixote e eu me tornei o seu Sancho Pança. Inutilmente
tentando proteje-lo das traições de amigos e das injustiças cometidas pela situação
econômica de uma época que buscava bodes expiatórios para justificar sua incompetência no comércio exterior.
Acompanhei-o quando se apresentou voluntariamente em São Paulo onde ficamos presos por um mês. Quando teve ganho de causa recebendo como indenização as torres de torrefação de café da fábrica, eu estava ao seu lado. Nessa hora bem que tentei que ele me atirasse para cima como sinal de jubilosa vitória. Mas por desilusão ou cansaço o máximo que fez foi me tirar da cabeça por uns instantes e passar um lenço na testa cansada. O que é que ele poderia fazer com torres de café?
Já de volta em casa alguém precisaria acompanha-lo quando saia em missão, montado no Roncinante que era seu Fusca. Esse nobre fidalgo tinha começado a procurar a “impossivel estrela”.
E nessa busca angustiada ele comprou um Haras e vendeu um haras.
Construiu casas e vendeu casas.
Comprou uma fazenda, importou vacas de leite que morreram mordidas por carrapatos Plantou tomates, abóboras, milho...
E plantou árvores.
Dulcinéia que não era fidalga não via a mim como fiel escudeiro nem via a ele como o cavaleiro da triste figura.
Desde sempre ele foi seu príncipe que montava um cavalo branco.
Mas a realidade foi se fazendo presente porque devagarinho uma doença começou a Minar seu físico e sua mente.
D. Quixote não podia mais montar seu Roncinante.
Passou a fazer seus passeios matinais caminhando, apesar da dificuldade. Depois precisou da cadeira de rodas.
E nos cinco anos que se seguiram eu, seu Sancho Pança o acompanhei protegendo sua cabeça do sol e do frio.
Estava vigilante quando meu amo e senhor morreu num dia 11 de setembro, o mesmo Dia em que caíram as torres gêmeas. Sempre me pergunto se sua busca impossível terá terminado.
Como em vida optou pela cremação, suas cinzas serão espalhadas ao vento, lá no alto da estrada de onde se pode avistar seu castelo e seu Roncinante parado na garagem
E eu?Que será de mim? Não sou nada sem meu amo!...
A mulher se aproxima da porta carregando a urna que contém as cinzas do companheiro.
De repente lembra de alguma coisa, volta até o cabide onde está pendurado o velho chapéu.
Abraça-o com ternura, leva-o até a garagem, abaixa-se e cuidadosamente e o coloca no chão perto do fusca que foi também tão amado pelo seu marido.
Aproxima um fósforo aceso do chapéu e suas lágrimas não apagam as chamas, que crescem para cima chiando alegremente.
Agradecido irei encontrar meu amo e juntos cavalgaremos o capim até o lugar mais alto da montanha, lá onde a terra encontra o céu, único lugar onde ele alcançará enfim, a sua estrela impossível.

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